COREIA DO NORTE, PROGRAMA NUCLEAR & BALÍSTICO, TENSÕES NO LESTE ASIÁTICO: impressões da palestra

Por Adermes Júnior*, 

Depois de exibir um vídeo propaganda exaltando os últimos feitos do governo, boa parte dos quais eu ainda não tinha conhecimento, como a inauguração de uma hidrelétrica aparentemente no lago do monte Paektu, o embaixador demonstrou que a posição norte-coreana é taxativa: “o nossos programas nuclear e balístico, desenvolvidos para responder às crescentes provocações americanas que, ano após ano, simulam uma invasão à Coreia Popular, junto aos sul-coreanos durante os exercícios militares, não serão objeto de negociação”, informou o Embaixador e Plenipotenciário da República Popular Democrática da Coreia no Brasil Kim Chol Hak, em Salvador, Bahia.

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Demonstração militar norte-coreana e seu arsenal nuclear.

De acordo com os embaixadores, a Coreia do Norte iniciou seu programa nuclear na década de noventa para fins pacíficos. A escassez de recursos naturais e o território diminuto eram um entrave à segurança energética de sua economia. Foi lembrado que a comunidade internacional, à época, reagiu bravamente exigindo que o país suspendesse suas atividades.

Na ocasião, o desenvolvimento de um parque energético nuclear estava sim à disposição do diálogo e poderia ser uma moeda de troca. Os EUA, então, se comprometeram a construir hidrelétricas que pudessem substituir as usinas nucleares. No entanto, as obras foram suspensas depois de alguns anos e os dirigentes de Pyongyang decidiram retomar o projeto nuclear.

Vale ressaltar que os exercícios militares conjuntos EUA-Coreia do Sul continuaram a cada ano desde o fim da Guerra da Coreia (1950-1953), o que alimentou nos norte-coreanos uma espécie de corrida armamentista para defender sua soberania frente às provocações e ameaças de invasão.

O país não abrirá mão dos testes por mais duras que sejam as sanções da ONU. Dos anos 2000 pra cá, quando o país abandonou unilateralmente o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e iniciou os testes atômicos, houve um enorme salto qualitativo na tecnologia nuclear para fins pacíficos e bélicos que não podem ser revertidos e dos quais a nação não abdica. No ano de 2012, o país, inclusive, proclamou em sua constituição o status de “Estado nuclearmente armado e indomável potência militar”.

Mesmo a China e a Rússia não são incapazes de conter seu programa nuclear. O embaixador reiterou que a relação entre Coreia do Norte e China deixou de ser assimétrica. Nos novos tempos, a conversa se dá entre duas nações nucleares, o que para os norte-coreanos parece ser condição básica para que um país se imponha bilateral e multilateralmente no sistema internacional.

Basicamente, a Coreia do Norte continuará desenvolvendo armas e artefatos nucleares até o ponto em que seu arsenal seja capaz de dissuadir completamente qualquer possibilidade de invasão americana.

Em sua fala, houve um tom de lamento e o mesmo chegou a considerar uma “tragédia” o fato de a China rejeitar e condenar veementemente o programa nuclear de sua aliada histórica. O representante de Pyongyang no Brasil relembrou que, na década de cinquenta, quando Mao Zedong decidiu nuclearizar a China, o país sofreu equivalente resistência e oposição da comunidade internacional, inclusive da Rússia – então União Soviética, aliada ideológica e detentora de armas nucleares – que rejeitou transferir tecnologia e disse que o país deveria desenvolver de forma autônoma se assim o desejasse. Todavia, a Coreia do Norte havia sido o único país favorável ao desenvolvimento nuclear chinês.

Eu fiquei meio cabreiro porque o programa nuclear chinês remonta ao período da Guerra da Coreia e alguns livros dizem que temendo um embate atômico direto com os EUA na Península Coreana, Stalin relegara o papel de guarda-chuva nuclear à China que já estava em combate contra as tropas americanas, das Nações Unidas e da Coreia do Sul na guerra, concedendo-lhe algumas armas e tecnologias nucleares mais incipientes.

Durante as perguntas da plateia, o embaixador respondeu que a visão de democracia coreana destoa da perspectiva ocidental em razão da influência do pensamento de Confúcio arraigado na cultura local. Isso, no entanto, não significa que o país não seja democrático. A sucessão entre os Kim no poder, por exemplo, está de acordo com a ideologia da filosofia Juche. Eles foram eleitos por unanimidade porque atendem aos pré-requisitos para dirigir a Revolução Coreana, a saber: estão capacitados para o cargo; possuem habilidade política; e contam com o carisma da população porque amam seu povo.

Antes de encerrar abruptamente a palestra de uma maneira que surpreendeu até a

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Adermes Jr. e o Embaixador e Plenipotenciário da República Popular Democrática da Coreia no Brasil, Kim Chol Hak.

organização do evento, ao ser questionado sobre Direitos Humanos, bloqueio a conteúdos ocidentais e refugiados na Coreia do Sul, os representantes disseram que só filtram o que há de negativo na cultura ocidental, desconversou sobre Direitos Humanos e disse que para falar sobre a questão das políticas deliberadas dos governos sul-coreanos contra seu país seria necessário um espaço de tempo maior.

Dia 18 de setembro, o curso de Relações Internacionais da Unijorge, em Salvador, promoveu uma palestra sobre os programas nuclear e balístico da Coreia do Norte, que contou com a representação diplomática do país no Brasil.

 

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*Adermes Júnior é estudante de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, e pesquisa as relações do Brasil com a China e a Coreia do Norte, integrando abordagens da Economia e Relações Internacionais. 

Independência ou Morte! Da emancipação nacional ao definhamento da pesquisa e ciência brasileira

Por Lucas Rocha

 

Penso que escrever este texto hoje* seja, de algum modo, simbólico. A data de 7 de setembro recorda um fato histórico ocorrido há 194 anos, quando o então Príncipe Regente D. Pedro I declarava a emancipação do Brasil de Portugal às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo.

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O famoso quadro de autoria do pintor Pedro Américo “Independência ou Morte”, retratando o então príncipe regente D. Pedro I em sua declaração pública de emancipação do Brasil frente a Portugal. Há uma série de críticas acerca da iconografia utilizada, dando a sensação de heroísmo e braveza diante da notoriedade do evento, no entanto, é um dos mais importantes símbolos atribuídos à data de 7 de setembro de 1822. 

O processo de independência do Brasil já ocorria há alguns anos em vista de diversos acontecimentos tanto no Brasil, quanto na Europa. Embora não seja historiador, nem me sinta muito à vontade de desenvolver um texto mais historiográfico, procurarei aqui fazer um breve retrato deste processo para, posteriormente, elaborar um paralelo, ainda que distante, de outro processo mais atual em curso no Brasil: o definhamento da ciência brasileira. Espero que esta tarefa não seja interpretada de maneira esdrúxula, mas apenas como algumas ideias que já vêm me ocorrendo e me motivando a escrever.

Para tratar do processo de independência brasileiro, relato aqui um pequeno contexto que desencadeou neste marco histórico.

Desde a abertura dos portos brasileiros – e, consequentemente, o rompimento do Pacto Colonial, em 1808 pela chegada de D. João VI – o Brasil passou a ser rapidamente tragado pela avidez do comércio inglês, cuja produção estava literalmente a todo vapor em meio ao auge da Revolução Industrial. Curiosamente, a taxação de produtos importados era maior inclusive para a própria Metrópole do que para a Inglaterra (em 1810, produtos ingleses eram taxados em 15% no Brasil, enquanto que os portugueses, 16% e 24% para outras nações) (MENDES JÚNIOR, 1979 in: PAZZINATO; SENISE, 1997).

A transição do eixo do poder político da Coroa Portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821, sobretudo após a elevação do Brasil da condição de Colônia para Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com regência a partir do Rio de Janeiro por D. João VI, em 1815, representou um profundo descontentamento das lideranças políticas deixadas pelo monarca português em Lisboa na ocasião de sua fuga das tropas napoleônicas para a colônia americana, escoltada pela marinha inglesa.

Além da pressão exercida pelo descontentamento da Junta política em Lisboa, eclodiu, em 1820, a Revolução Liberal do Porto, fato que, necessariamente, obrigou a volta e D. João VI e sua Corte de volta à Europa, em 1821, e deixou seu herdeiro, o príncipe regente D. Pedro I, no comando do Reino do Brasil.

A singela proeminência que o Brasil adquiriu com a passagem da Família Real e o efeito da “inversão metropolitana” sentido durante os primeiros anos do século XIX provocou um efeito reacionário em Portugal, o qual passou a exercer mecanismos políticos que visavam retroceder o Brasil à condição de colônia.

Contudo, aqui no Brasil, já havia se consolidado uma aristocracia descendente dos

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Ilustração do funcionamento do Comércio Triangular e sua expressão geográfica ao longo do Atlântico, ligando porções africanas às áreas de produção agrícola no Brasil e Portugal exercendo o papel de domínio político metropolitano.  Fonte: LEBRUN, François. Atlas historique. Paris: Machette, 2000 in: MOREIRA, João Carlos; SENE, Eustáquio de. Projeto Múltiplo: Geografia – volume único: parte 1. São Paulo: Ed. Scipione, 2014. 

moldes de exploração colonial de Portugal e existia, portanto, uma elite rural ligada às culturas da cana-de-açúcar e outros produtos primários que já circulavam internacionalmente pela expansão do Capitalismo Comercial, sobretudo mediante o Comércio Triangular – o qual ligava, de certo modo, colônias lusitanas na África ao Brasil pela captura de mão-de-obra escrava para trabalhar em fazendas brasileiras, o Brasil a Portugal, pela oferta de produtos primários e Portugal às colônias, pelo controle político metropolitano e oferta de produtos europeus manufaturados.

Esta elite rural brasileira, que mantinha laços crescentes com a Inglaterra, passou a provocar um movimento emancipacionista que, por sua vez, teve a adesão do príncipe regente. Em 1822, esses movimentos obtiveram a permanência de D. Pedro I no Brasil (o Fico) e, meses depois, a declaração de independência de Portugal. Contudo, ainda houve certa resistência portuguesa em reconhecer esta condição nova e algumas guerras foram travadas. Somente em 1825, Portugal reconheceu a independência brasileira mediante o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas a Portugal (uma jogada altamente lucrativa para a Inglaterra, a potência industrial e imperialista da época que mediou as negociações diplomáticas).

O processo que resultou no nascimento do novo Estado, o Império do Brasil, liderado pela regência do autoproclamado imperador D. Pedro I, filho do próprio monarca português, indica que não foi, de fato, uma independência genuína que conclamava a autonomia do “povo brasileiro” perante o domínio português. Dom Pedro I, em carta a seu pai D. João VI, continuou a referir-se a si mesmo como “príncipe regente” e a seu pai como “rei do Império do Brasil independente” (VIANNA, 1994). Tampouco existia uma “identidade brasileira” que fizesse integrar culturalmente os brasileiros das mais diferentes localidades da vastidão territorial da Colônia. Da mesma forma, as tentativas locais de revoltas e insurgências ocorridas anteriormente foram sufocadas pelas tropas portuguesas.

Então, convidamos a pensar: o que foi a nossa independência? Qual o sentido de um processo de independência de Portugal, cujo o regente do novo império é um próprio português herdeiro da Coroa metropolitana? E que, caso D. João VI retornasse ao Brasil, ele próprio abdicaria do trono em favor do pai (LIMA, 1997). Qual o sentido de termo-nos tornado independentes na condição de gerar nossa primeira grande dívida externa e, somente assim, termos nossa autonomia administrativa e territorial reconhecida? O que é a independência e para quem ela foi útil/ favorável? 

Particularmente, não entendo o porquê de comemorarmos um dia que, simbolicamente, representou nossa autonomia em relação à condição exploradora de Portugal e adentrou na condição exploradora da Inglaterra e, de modo geral, do sistema econômico internacional. Pois, mesmo depois, os feitos políticos realizados no Brasil como a declaração da República e a abolição da escravidão representaram, na verdade, interesses externos aos brasileiros, em primeiro lugar. Os vetores de poder que aqui atuavam já traçavam as estratégias necessárias para a rearticulação política de nossa nação de modo a potencializar os ganhos produtivos gerados lá fora pela Revolução Industrial – como a pressão para a mudança do perfil produtivo local de mão-de-obra escrava para a assalariada, uma das necessidades dos ideais liberais do capitalismo de então (guardados os respectivos movimentos reacionários de insistência do modelo escravagista pelas contradições do próprio capitalismo daquela época).

De modo geral, percebo que a história brasileira esteve sempre à mercê dos interesses das aristocracias, das elites produtivas, que nunca foram muito preocupadas em estabelecer um projeto de desenvolvimento de país, mas sim, preocupadas com seus próprios ganhos. Não observo, em nenhum momento de nossa história, que o Brasil teve uma Política de Estado preocupada em desenvolver a indústria nacional e possibilitar certa autonomia – independência – do sistema produtivo internacional. Observo, no entanto, uma sucessão de políticas de governos, os quais se comprometeram apenas com suas agendas sem dar continuidade aos projetos iniciados por conflitos de interesses políticos e ideológicos.

Evidentemente, faço uma grande generalização, sem adentrar em pormenores históricos que fogem à regra. Porém, observando-se em um espectro mais amplo, tenho esta impressão. Mas, por que esta discussão? Penso que ela continua mais atual do que nunca, pois, novamente, estamos vivenciando um processo doloroso que está tolhendo o que viria a ser um movimento embrionário de autonomia brasileira frente ao sistema produtivo internacional: me refiro aos cortes governamentais nas áreas da ciência, pesquisa, tecnologia e educação.

Desde 2013, mediante os reflexos da crise econômica mundial, iniciada em 2008 nos EUA, mas amortecida no Brasil pela nossa política externa de aproximação com a voluptuosa China e sua posterior redução dos ritmos de crescimento, o nosso país vem passando por uma gradual e intensa crise econômica interna. Atrelada à ela, vimos eclodir uma crise política (que, por sua vez, geraram outras crises institucionais e de confiança) causada pela disputa de poder, o esvaziamento da capacidade governamental do Partido dos Trabalhadores (PT), os sucessivos escândalos de corrupção, a manipulação midiática e subjetiva da opinião pública, entre muitos outros aspectos, resultaram no impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016.

O objetivo aqui não é entrar em detalhes desta discussão, embora, este que vos escreve entende que o processo de impeachment ocorreu pelo esvaziamento do poder governamental atribuído ao PT por um incessante movimento golpista que se apropriou da máquina legislativa e judiciária e adentrou nos poros esvaziados de poder político para legitimar um impeachment sem sólida argumentação jurídico-política e encenado por discursos horrendos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. A agenda perdedora das eleições de 2013 foi, definitivamente, imposta pelo governo representado por Michel Temer (PMDB) e seus aliados tucanos em 2016 (por isso o golpe, pois Temer, tendo sido eleito em chapa com o PT e representando uma agenda política vencedora nas urnas, aplicou justamente o contrário ao obter o poder – fora que o mesmo não foi “impichado” por argumentos no STF ainda mais pífios que os atribuídos ao julgamento de Dilma).

Contudo, é apenas uma consequência – ainda que antidemocrática – da perigosa política de alianças que dá preferência a certas condições de governabilidade e desprestigia outras questões mais filosóficas ou ideológicas. Escolhas…

O fato é que, gostem ou não, o período representado pelos governos do PT representou um dos momentos de maior prosperidade econômica e social da história do Brasil, ainda que sejam válidos pontuar muitos erros – e também diversos escândalos de corrupção – dado que abalou a moralidade antes atribuída ao PT por ter sido sempre a oposição questionadora. Essa prosperidade se refletiu em um desenvolvimento inédito da ciência brasileira, pois jamais se viu até o momento uma expansão quantitativa das instituições universitárias, as quais também se interiorizaram, dinamizando a economia local de muitas cidades e redefinindo o mapa da produção científica e acadêmica no país, antes muito circunscrito à Região Concentrada do Centro-Sul do país e poucos casos históricos de algumas capitais do Norte e Nordeste.

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Mapa da interiorização e expansão das universidades federais entre 2002 e 2010: um acréscimo de 187 instituições de ensino superior em apenas 8 anos. Fonte: ARAÚJO, Tânia Bacelar de. O papel das universidades no desenvolvimento do país. 50º Fórum Nacional de Reitores. Recife, 2012. 

Observamos o aumento dos recursos destinados à ciência, pesquisa e tecnologia. Isto também abarcou a ampliação da oferta de bolsas de fomento, o que, por sua vez, fez multiplicar o número de mestres e doutores das mais diversas áreas.

Os resultados da produção científica, das pesquisas e dos investimentos em tecnologia  e inovação nos cercam em tudo o que fazemos em nosso cotidiano: desde a comida do nosso dia-a-dia (na qual se emprega, em muitos casos, intensa informação e tecnologia agrícola), ao combustível que usamos (oriundo de poços profundos de captação de petróleo e posterior refino), ao gás utilizado nas cozinhas residenciais e industriais para a preparação de comida diariamente, ao tratamento de água e esgoto, aos avanços na medicina e nas vacinas, enfim, praticamente tudo ao nosso redor é fruto de intensos investimentos em ciência, pesquisa, tecnologia e inovação (ESCOBAR, 2017c).

Entretanto, desde os primeiros sintomas da ressaca da crise econômica no Brasil, ainda sob governo Dilma, em 2013, ao seu agravamento para a crise política e institucional, sob o espectro do golpe jurídico-parlamentar, sob o governo Temer, sucessivos cortes nos orçamentos destinados à ciência no Brasil estão fazendo sangrar o recente avanço e entusiasmo de professores e pesquisadores em ver o país a despontar como promessa de uma potência científica – pois tínhamos (ou ainda temos) tudo para ser!

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Investimentos do CNPq em bolsas e projetos de pesquisa desde 2001 (valores absolutos, sem contar a inflação). Nota-se o implacável decréscimo dos investimentos desde 2015, já consolidando 2016 de volta aos mesmos moldes de 7 anos antes e tudo indica que 2017 e 2018 terão as mesmas tendências. Fonte: CNPq/ Dados atualizados até junho de 2017 – os resultados apresentados para o ano corrente são parciais. ESCOBAR, Herton. O Estado de São Paulo. CNPq atinge teto orçamentário e pagamento de bolsas pode ser suspenso. São Paulo, 2017a. 

Acompanhando os sucessivos cortes do governo para a área das ciências, pesquisa e tecnologia, o discurso fomentado sobre isso indica a ideia de que o governo trabalha no entendimento de uma “redução de gastos” ou “redução de custos”, conforme se ouviu do próprio Presidente em Exercício, o deputado Rodrigo Maia, na ocasião do acordo de recuperação fiscal assinado recentemente, no dia 05 de setembro de 2017 (G1, 2017). Este projeto implicará, entre outras consequências severas à população fluminense, a demissão de servidores públicos e, provavelmente, decretará o fim da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e outras universidades estaduais. O próprio Ministro da Fazenda, Guido Mântega, em conjunto com o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB), chegaram a sugerir a “revisão” (vide redução ou até mesmo extinção) da oferta do ensino superior no estado (IMS – UERJ, 2017).

No estado de São Paulo, além das severas crises observadas nas universidades públicas

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Sírius, localizado em Campinas – SP: um verdadeiro ícone da ciência, pesquisa e tecnologia brasileira. Também um símbolo da indústria e soberania nacional, visto o emprego de tecnologia desenvolvida no Brasil para sua realização, porém, encontra-se ameaçado. 

como UNESP, USP e Unicamp, que implicam em demissões de servidores, redução de investimentos e dúvidas quanto aos recursos para o pagamento de professores, um exemplo marcante é o Sírius, um projeto icônico de construção de um dos laboratórios mais avançado do mundo para a geração de luz síncrotron, um marco da física brasileira, um ícone da capacidade da ciência e pesquisa nacional, um autêntico representante da soberania brasileira – uma vez que o projeto é 100% brasileiro com cerca de 85% dos componentes produzidos e desenvolvidos em território nacional por empresas nacionais de diversas escalas (ESCOBAR, 2017b). O Sírius, localizado em Campinas, corre um grande risco de não conseguir terminar a sua construção, que está prevista para junho de 2018. Mesmo tendo um orçamento próprio vinculado ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o projeto, submetido ao Centro Nacional de Pesquisas em Energias e Materiais (CNPEM) sequer tem verba suficiente para garantir o funcionamento das obras, demais atividades e pagamento de pessoal. Sem novos repasses federais, corre-se um sério risco de fechar as portas. (ESCOBAR, 2017b).

A crise da ciência também se reflete com avidez sobre as Ciências Humanas. Historicamente, as próprias Humanidades buscaram, por meio de métodos emprestados das ciências duras e exatas, se legitimarem enquanto ciência (SAFATLE, 2009). Posteriormente, mesmo desenvolvendo seus próprios métodos e sua própria identidade no ramo dos saberes, o senso comum continua a desqualificar e questionar a importância ou “utilidade” da Sociologia, Antropologia, Geografia, História e Filosofia (tá no pacote). Isto é gravíssimo ao ponto de o próprio governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), publicamente criticar o orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) destinado às Ciências Humanas e Sociais, se referindo a elas enquanto “projetos acadêmicos sem nenhuma relevância” (Folha de São Paulo, 2016).

O “mau estar nas Ciências Humanas” (SAFATLE, 2009) consolida-se pela aversão e desprestígio dos cientistas e pesquisadores formados nessas áreas do conhecimento, os quais ressalto: cientistas sociais e políticos, antropólogos, geógrafos, historiadores, filósofos, dentre outros. Cabe fazer um reconhecimento dessas formações para a formulação do pensamento intelectual brasileiro, o qual se refletiu e ainda se reflete na formulação de políticas públicas, de análises políticas, sociais e econômicas, de um aprofundamento no conhecimento da nossa própria cultura, da nossa própria história e do nosso próprio território! Haja visto Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Antônio Cândido, Florestan Fernandes, Milton Santos, Aziz Ab’Saber, Paulo Freire, entre muitos outros! Portanto, um conhecimento imprescindível de nós, enquanto povo e de nosso mundo, enfim, a sociedade e a natureza.

A crise orçamentária pela qual a ciência e a pesquisa vêm passando no Brasil atinge, de maneira singular, a produção acadêmica das Humanidades, pois a área já sendo envolta em um histórico de descrédito e ilegitimidade no contexto do senso comum mesmo em períodos mais abundantes, nos períodos de crise são as primeiras a serem visadas para cortes, visto que os próprios governantes reproduzem o discurso da falta de relevância da área (o que é paradoxal, vindo de um político – mas entendemos sua estratégia de poder) (Folha de São Paulo, 2016).

Diferentemente do que o governo tem mencionado, direta ou indiretamente, a ciência, a pesquisa, a tecnologia e tampouco a educação devem ser vistas como gastos ou custos a serem reduzidos em tempos de crise. Todos os países que passaram por crises financeiras investiram em ciência, pesquisa, inovação, tecnologia e educação para se recuperarem (ESCOBAR, 2017c), pois são estes os elementos que garantem à nação a capacidade de crescimento econômico robusto a longo prazo (PEREIRA; LOPES, 2014).

A despeito da produção econômica e o consumo estimulado, os índices inflacionários não permitem identificar um fator que justifique o crescimento razoável de um país. Somente quando há investimentos em inovação e educação, é que, de fato, permite-se apontar o fator necessário capaz de impulsionar uma nação ao desenvolvimento econômico (e possivelmente social). Ou mesmo, de acordo com algumas teorias econômicas, trata-se da importância atribuída ao capital humano relacionado à educação para fazer a diferença (PEREIRA; LOPES, 2014).

De forma nenhuma podemos aceitar que a ciência, a pesquisa e a educação sejam vistas e tratadas como gastos ou custos passíveis de serem inquestionavelmente cortados a fim de se justificar medidas de austeridade para saídas da crise. Esse amargo “remédio” imposto como norma para o “desenvolvimento” não é novo, já que nos anos 1990 experimentamos os desatinos da cartilha neoliberal e agora parece que está retornando com força no país. Isto indica que, o que parecia ser um tímido e embrionário crescimento e autonomia brasileira no campo da ciência, está sendo sucateado para voltarmos à estaca de dependência (científica e tecnológica) e à morte de milhares de pessoas que, desassistidas pelos cortes das áreas, padecerão à espera de uma mudança, sobretudo os mais pobres!

Independência e autonomia científica pelo bem de um Estado que reconheça seus cientistas, que valorize os pesquisadores das mais diversas áreas e incorpore a educação como meta e prioridade de Estado, não de governos. Ou morte, pobreza, desigualdade e serão as consequências de se tratar arbitrariamente a ciência como custo supérfluo irrelevante pela conhecida cartilha neoliberal e imperialista de submissão brasileira ao sistema produtivo internacional.

 

* Na verdade, eu comecei o texto em 07 de setembro mesmo, mas o ritmo do pensamento não me permitiu ser tão pragmático quanto queria ao ponto de publicá-lo no mesmo dia para enfatizar o simbolismo da data. 

 

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Referências: 

 

ARAÚJO, Tânia Bacelar de. O papel das universidades no desenvolvimento do país. 50º Fórum Nacional de Reitores. Recife, 2012.

 

ESCOBAR, Herton. CNPq atinge teto orçamentário e pagamento de bolsas pode ser suspenso. O Estado de São Paulo, São Paulo, 2017a.

__________________. Crise ameaça a maior obra da ciência brasileira. O Estado de São Paulo, São Paulo, 2017b.

__________________. A ciência brasileira está falida. E daí? O Estado de São Paulo, São Paulo, 2017c.

Folha de São Paulo. Alckmin critica FAPESP por pesquisas ‘sem utilidade prática’. São Paulo, 2016.

G1. Governo do Rio de Janeiro fecha acordo de recuperação fiscal. São Paulo, 2017.

Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS – UERJ). Fazenda pede o fim da UERJ e demissão de servidores. Rio de Janeiro, 2017.

LEBRUN, François. Atlas historique. Paris: Machette, 2000 in: MOREIRA, João Carlos; SENE, Eustáquio de. Projeto Múltiplo: Geografia – volume único: parte 1. São Paulo: Ed. Scipione, 2014.

 

LIMA, Manoel de Oliveira. O movimento da independência. 6ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

MENDES JÚNIOR, Antônio e outros. Brasil História – textos e consulta. São Paulo, Brasiliense, 1979 in: PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. São Paulo, Editora Ática, 1997.

PEREIRA, Miriam Tomiato; LOPES, Janete Leige. A importância do capital humano para o crescimento econômico. IX EPCT – Encontro de Produção Científica e Tecnológica. Campo Mourão, 2014.

SAFATLE, Vladmir. O mau estar nas Ciências Humanas. Revista Cult, São Paulo, 2009.

VIANNA, Hélio. História do Brasil: período colonial, monarquia e república. 15ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1994.

 

 

Sem mapas públicos, sem cidadania!

Por Luiz Ugeda*

 

A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) deliberou no dia 2 de maio sobre a regulamentação dos drones. O Congresso tem discutido a Medida Provisória sobre a regularização fundiária e o Uber. Deputados lançam a Frente Parlamentar para a modernização da Base de Alcântara. O Estado do Rio de Janeiro lança um atlas solar. A pergunta é: o que essas ações têm em comum?

Esses temas falam de território e das formas de gerir e monitorá-lo, para que o país desenvolva seu mapeamento oficial denominado infraestrutura geográfica – ou a “infraestrutura da infraestrutura”. Drones criam imagens do solo; a regularização da propriedade rural traz segurança jurídica para o campo; a discussão sobre o Uber delimita até que ponto as ferramentas de geolocalização concorrem com os serviços públicos municipais; a maior capacidade aeroespacial permitirá mais autonomia no lançamento de satélites e registro de imagens do espaço; e o atlas solar do Rio de Janeiro mostra onde estão os pontos de melhor insolação do Estado, essencial para o aprimoramento da matriz energética renovável. A infraestrutura geográfica é, portanto, o primeiro passo para que o Brasil possa realizar seus projetos estruturantes. Sem mapas, nada se edifica: nos tornamos desconhecidos, não somos cidadãos.

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Geotecnologia: cartografia digital do relevo de área de manancial.

Atualmente, mapas revelam nossas possibilidades de unir oferta e demanda, uma vez que latitude e longitude passaram a ter sinalização econômica e a globalização se retroalimenta dos dados do Big Data e das ferramentas geoespaciais. Pessoas se georreferenciam nas redes sociais. O Estado georreferencia os cidadãos para efeitos tributários, criminais e até de espionagem. A geolocalização está na origem das políticas públicas para prevenção de catástrofes naturais, urbanização de favelas, planejamento ambiental e até gestão de detentos por tornozeleiras eletrônicas. Com a proliferação dos smartphones, temos acesso a diversas formas de mapas, e todo este contexto molda o estilo de vida neste início de século.

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Geotecnologia: cartografia digital da infraestrutura urbana e hierarquia do sistema viário.

Hoje, é comum realizar download de softwares de informação geográfica que fariam inveja aos serviços de espionagem de qualquer país há 15 anos. Se antes da internet o Estado já se encontrava no retrovisor das forças globalizantes, quem dirá agora com o salto qualitativo da bilionária indústria da informação geográfica? Para que o Estado retorne à situação de equilíbrio e promova políticas públicas voltadas à cidadania por meio da geotecnologia, ele deverá, inequivocamente, ter uma consistente política pública geográfica. E o Brasil está longe disso.

O país se estruturou em torno de mil leis e decretos que regulamentam e interferem direta ou indiretamente na Geografia de Estado, e há quase 65 mil mapas no país que traduzem 8,5 milhões de km² por enfoques diversos. Estima-se que o Brasil, nos cartórios, é em torno de 600 mil km² maior do que a realidade geográfica – o equivalente ao Estado de Minas Gerais. Esses dados revelam como o país negligencia a sua infraestrutura geográfica ao criar uma colcha de retalhos cartográfica, com “puxadinhos” legais e normas que se emendam sem uma compreensão do território como algo único.

Nesse cenário, torna-se imperativo patrocinar o renascimento da infraestrutura geográfica como política pública. Getúlio Vargas equacionou esse problema com vanguarda quando, em 1938, criou o IBGE autárquico, ligado diretamente à Presidência da República, com a finalidade de regular o território e mediar conflitos territoriais, fomentando o deslocamento de populações para ocupar o oeste do país. Castelo Branco, em 1967, deu, por outro lado, um nó tático na governança geográfica quando, de uma única vez, extinguiu o IBGE autárquico e criou a Fundação IBGE, retirando a sua capacidade regulatória.

A Constituição de 1988 diz que devemos ter uma geografia e cartografia oficiais, mas até hoje não as regulamentamos. Em que pese iniciativas isoladas, estamos atrasados e a retomada da infraestrutura geográfica como política pública no Brasil é urgente. Se hoje existem as ferramentas técnicas necessárias para que a Geografia forneça o “onde”, por meio da infraestrutura geográfica, cabe agora ao Congresso Nacional determinar como ela se tornará, efetivamente, um bem de domínio público.

Só assim o território brasileiro será um espaço do cidadão, com condições objetivas de mediar conflitos entre lotes, áreas, propriedades, reservas ambientais, indígenas, entre outros, com base em mapas e em normas públicas. Caso contrário, seguiremos em solo desconhecido, desorientados diante do futuro.

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* Luiz Ugeda é advogado e geógrafo, presidente do Instituto Geodireito, autor do livro: Direito Administrativo Geográfico – Fundamentos na Geografia e na Cartografia Oficial do Brasil, lançado em 2017

Produção do espaço urbano e resistência indígena em La Paz – Bolívia

Por Lucas Rocha

Cara leitora e leitor,

Já fazia realmente um bom tempo que não postava mais no blog por diversos motivos, mas talvez o principal deles se refere à nova rotina em função das atividades no mestrado. De fato, a vida na pesquisa consome bastante tempo com muita leitura, discussões e escrita, mas também com aflições e angústias causadas pelo momento atual na política e na economia, os quais se refletem em falta de condições materiais para os pós-graduandos. Enfim, isto não significa o término desta atividade, porém, apenas como havia previsto, somente postagens com um tempo mais amplo entre uma e outra, na medida em que puder, sem pressa.

A vida acadêmica também me trouxe novas possibilidades como poder comparecer ao Encontro de Geógrafos da América Latina – EGAL 2017 – evento que se deu em La Paz, na Bolívia, durante alguns dias do mês de Abril. Nesta oportunidade, aproveitei para chegar uns dias antes e conhecer um pouco mais da cidade e seu entorno e assim, ampliar um pouco mais o arcabouço cultural sobre nossos irmãos sul-americanos. Para minha surpresa, em poucos dias aprendi muito sobre a Bolívia! A convivência com este povo (ou estes povos) me fez desconstruir muitos preconceitos e reconstruir um olhar de profundo respeito e admiração.

O texto que quero abordar aqui traz uma contribuição em alguns desses aspectos voltados para a observação da paisagem de La Paz e inferências sobre a recente produção de seu espaço urbano. Já havia desejado escrevê-lo logo assim que voltei de viagem, porém os compromissos me fizeram estabelecer outras prioridades, no entanto, um texto que li sobre a Nova Arquitetura Andina na Bolívia me fez recordar dessas imagens existentes na cidade, das formas e da beleza escondida em meio à predominância monocromática alaranjada da extensa periferia.

Ao se chegar, pousa-se no Aeroporto de La Paz, que fica no bairro de El Alto, a 4050 m de altitude! Embora os efeitos no organismo sejam incômodos aos que não estão acostumados, a observação da paisagem chama mais a atenção no trajeto feito do aeroporto em direção ao centro da cidade, que fica a pouco mais de 3000 m de altitude. Uma descida íngreme de quase 1000 metros e sua total ocupação habitacional são marcantes aos turistas.

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Vista da periferia de La Paz de dentro da Linha Vermelha do Teleférico, aproximando-se do Centro “antigo” da capital boliviana, porém, nem sequer na metade do trajeto ainda até a próxima estação. A diferença topográfica varia cerca de 1000 m entre os pontos mais alto e baixo da cidade. (Foto: Lucas Rocha, Abril de 2017)

Uma das primeiras impressões causadas nos turistas, creio que especialmente aos brasileiros acostumados às imagens famosas das favelas que encobrem os morros no Rio de Janeiro e em diversas outras localidades do Brasil, é de que tudo isto se trata de uma imensa favela. Este pensamento está, contudo, fortemente equivocado! Evidente que há favelas – ou melhor dizendo, ocupações que denotam graus avançados de vulnerabilidade socioambiental – porém, a simples observação da forma das casas sem reboco e alocadas em encostas tão íngremes não as caracteriza enquanto favela.

A constituição das favelas comumente presente nas grandes cidades latino-americanas são as expressões sócio-territoriais da desigualdade, pois são desprovidas/pouco providas das infraestruturas básicas urbanas. Além disso, as próprias construções são precárias e improvisadas, o que confere um caráter simples na forma das construções nestes espaços. Diferente do que se observa nas favelas, em muitas das construções vistas na periferia de La Paz, observa-se que há certos traços arquitetônicos que denotam uma vontade de arrojamento, de ousadia, por meio da construção de formas com um desenho único, curvas ou linhas retas estritamente projetadas e símbolos como a Cruz Andina, vista em janelas ou impressas na parede. Portanto, não são construções improvisadas ou precarizadas, mas o que há aqui é o reflexo da regulação do território em La Paz, que prevê um imposto mais caro àqueles edifícios com acabamento – fato que resulta em grande parte dessas construções terminarem ainda na fase de alvenaria à mostra.

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Um impasse tributário: o reboco dos prédios resultam em uma cobrança maior de impostos, fato que desestimula grande parte dos moradores da periferia de La Paz a darem os acabamentos nos edifícios, dando um efeito monocromático alaranjado na paisagem. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

La Paz é uma cidade extremamente desigual, assim como diversas outras capitais sul-americanas. Tal como sua grande diferença topográfica, a sociedade que usa e produz aquele território também se apresenta desta mesma maneira. A observação da paisagem, dessa forma, é bastante marcante na medida em que se passa da periferia para o Centro tradicional antigo da cidade e, posteriormente, para as áreas das novas centralidades ao sul da capital. Neste ponto, a arquitetura também reflete a fragmentação do espaço urbano, passando de diversos prédios neo-clássicos e barrocos para prédios modernos e altos.

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Caminhando na direção do Centro à Zona Sul: o vetor da centralidade econômica de La Paz. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

Observa-se também a predominância pelo uso do modal rodoviarista, sobretudo automóveis particulares na cidade toda, mas também, muitos micro-ônibus e vans. Carros, vans, micro-ônibus e ônibus: todos disputam cada milímetro do viário urbano como gladiadores. Curiosamente, pouquíssimas motos. O uso das buzinas é frequente e cotidiano, fato que incomoda bastante aos que não convivem com tamanho excesso – assim como a grande emissão de CO2 pelos carros antigos – são problemas sócio-ambientais bastante desafiadores para La Paz.

Não obstante, a capital boliviana apresenta não só desigualdades ou problemas urbanos e ambientais. La Paz tem uma dinâmica própria, uma especificidade capaz de entusiasmar quem a conhece de peito aberto, expresso pela carinhosa recepção e acolhimento dos bolivianos, pelas suas manifestações culturais e artísticas e pela resiliência e resistência dos povos andinos em manter suas tradições e seu orgulho.

Este resgate às raízes andinas foi percebido em minha ida a Tiwanaku, atual sítio arqueológico onde se deu a ascensão do Império Tiwanaku (civilização pré-Inca), já com altíssimo grau de técnicas de construção e engenharia, além de uma forte relação com a natureza – forma das divindades tiwanacotas.  Esta localidade fica a cerca de 76 km a oeste de La Paz e é considerada como a capital política e espiritual da Cultura Tiwanaku, havendo inclusive uma relação geográfica com outras localizações importantes do Império, formando um eixo perfeito que liga Potosí e Oruro a sudeste e Isla del Sol, Pucara, Cuzco, Vitos até Tumbes (as três últimas em território peruano), formando a Rota de Viracocha.

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Detalhe do painel de informações encontrado na entrada do sítio arqueológico de Tiwanaku – Bolívia, mostrando sua localização no tempo e sua importância geográfica, política e espiritual para este povo. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

É em Tiwanaku que se expressa o desenvolvimento tecnológico mais notável da história pré-colombiana do continente sul-americano, herança que foi passada para os Incas no decorrer de seu domínio político e marcou profundamente os traços culturais, artísticos e religiosos dos povos indígenas descendentes, sobretudo os Aymaras, originários dos altiplanos andinos. Esta centralidade política e religiosa abriga ainda hoje um conjunto de templos, os quais eram atribuídos aos reino dos céus, reino da terra e o reino das profundezas. Por isso, um templo se projetava para cima como pirâmide, outro na superfície e outro abaixo da superfície.

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Uma das principais visões em Tiwanaku, observando-se um templo semi-subterrâneo, onde se encontram alguns monólitos esculpidos no centro e nas paredes em forma de diversas cabeças. Em segundo plano, o Templo Kalasasaya e sua notável geometria em que se vê Pachamama de frente. Há também a Porta do Sol, outro monólito esculpido perfeitamente retilíneo. Não há ainda uma explicação, mas estima-se que se trata de um calendário. Quando aos demais elementos do pátio, o mistério prevalece. (Foto: http://www.lapazlife.com/places/tiwanaku-tiahuanaco/)

As formas entalhadas em monólitos de diversos tamanhos simbolizavam divindades atribuídas aos animais comuns da região como o puma, o condor, a lhama, a coruja, entre outros. Da mesma maneira, a forma feminina estava atribuída à figura da máxima divindade tiwanakota – a Pachamama – como uma espécie de Deusa Mãe-Terra, simbolizava a fertilidade e a vida. Ademais, um vasto conhecimento astronômico também estava expresso por meio de formas artísticas e divinas do Sol, da Lua, e das estrelas, além da composição de um complexo calendário lunar.

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Cartaz de celebração do Ano Novo Aymara (ano 5.523 – ano 2015 d.C.). Tiwanaku mantém-se como centro espiritual e cultural da cultura Andina. Detalhe para as formas e as cores expressas nas roupas típicas – traços do orgulho andino. (Fonte: Governación de La Paz – Twitter).

Tudo isso: os templos construídos com avançadíssima tecnologia para a época com encaixes retilíneos de blocos monolíticos pesadíssimos, as figuras divinas também talhadas em blocos únicos de rocha basáltica extraídas dos vulcões próximos ao Titicaca, estão todas marcadas com abundantes formas retas assimetricamente desenhadas. Da mesma maneira, os vestuários tradicionais indígenas marcam estes padrões de linhas assimétricas e formas bem calculadas, também abundante em cores e tons. Estes são os principais elementos artísticos e culturais que representam o pujante passado andino, motivo de orgulho aos Aymaras e demais povos indígenas que se espalham desde o Equador, Peru, Bolívia e norte do Chile.

De fato, a Bolívia tem vivenciado os últimos séculos mediante diversos processos de dominação política e econômica bastante violentos. O país que, somente em sua história republicana, foi vítima de 200 golpes de estado, cujo atual território não possui saída para o mar – fator que contribui para as dificuldades de comércio exterior e que, também é motivo de um dos principais conflitos geopolíticos da América do Sul, tem a pobreza e a resistência pela vida como uma característica intrínseca.

Inegável foram os efeitos da mudança política atribuída à ascensão de Evo Morales à presidência da Bolívia, em 2006. Pela primeira vez na história boliviana, este país de extensa maioria indígena elege um de seus representantes para o maior cargo do executivo político e a representatividade importa! A Bolívia passou a ser o primeiro país no mundo a se reconhecer enquanto um Estado Plurinacional Comunitário Multicultural, o que dá um caráter inédito em termos de governança e planejamento territorial, mas sobretudo, empoderamento às dezenas de diferentes nações indígenas que compõem o território.

As mudanças refletidas no espaço urbano também são muitas. Para não tornar a leitura cansativa, detenho-me ao exemplo mais notável em La Paz – a revolução na mobilidade urbana que significou a instalação dos teleféricos. Um investimento feito com poucos recursos – se comparado a malhas de metrô ou trens – porém com alta tecnologia e segurança, bastante conveniente inclusive para a própria topografia marcante da cidade. Os teleféricos se dividem em várias linhas que ligam bairros periféricos aos centrais de maneira rápida e confortável. Ainda em construção atualmente, a rede expande-se para localidades mais pobres, onde a necessidade e as distâncias são maiores. As estações são o que há de melhor, dotadas de serviços desde comidas rápidas, pequenos restaurantes e mercados, caixas eletrônicos e alguns escritórios, são comparáveis às estações da moderna Linha Amarela do Metrô de São Paulo, não em questão de tamanho – evidentemente – mas em limpeza, arquitetura, tecnologia e organização.

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Entrada da Estação Waña Jawira, da Linha Azul. Detalhe para um dos escritórios da empresa estatal Entel, administradora dos teleféricos. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

Transportar-se por meio de teleférico sobre o tecido urbano de La Paz é uma oportunidade única de observar com detalhes e calmamente a conformação da cidade, suas formas, a fragmentação e articulação de seu espaço, sua extensão, seus fluxos e mesmo seu incrível horizonte formado pelos picos nevados da Cordilheira dos Andes.

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Vista de uma parte de El Alto sobre o teleférico da Linha Azul. Detalhe para as formas arquitetônicas andinas de Mamani, explicadas abaixo no texto. O transporte de teleférico é uma ótima oportunidade de visualizar a estrutura urbana e os fluxos da cidade. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

A observação pelo teleférico sobre o bairro periférico de El Alto chama a atenção, pois em meio à predominância alaranjada das construções sem reboco, alguns prédios com um notável acabamento se destacam na paisagem. Trata-se de um elemento novo e pujante na arquitetura boliviana que busca construir uma identidade arquitetônica aymara. Tais prédios são facilmente notados por suas formas muito particulares, seus desenhos simétricos e suas cores vibrantes.

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Paisagem em El Alto, La Paz. Detalhe para os poucos prédios acabados com arquitetura aymara em meio à monocromia alaranjada do tecido urbano construído. O horizonte é estonteante com a vista das montanhas nevadas na Cordilheira Andina. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

Freddy Mamani é o criador deste estilo que vem se destacando na paisagem de La Paz. O ex-pedreiro tornou-se engenheiro e construtor civil e rompeu barreiras ao propor algo de novo às construções bolivianas, um estilo que fosse genuinamente representante do orgulho andino, representando suas formas, seus traçados e suas cores. Algo que se destacasse em meio à monocromia da periferia. Desta forma, conseguiu-se estabelecer algo que valorizasse o orgulho aymara, pois suas construções são planejadas para serem imponentes de modo a resgatar a imponência das construções tiwanakas antigas como novos elementos da paisagem urbana da capital boliviana.

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Vista do teleférico para dois prédios acabados com o típico estilo arquitetônico andino aymara introduzido por Mamani, em El Alto, La Paz. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

A maioria de seus prédios possuem um amplo espaço voltado para salão de festas bastante colorido e imponente. Justamente, em vista dos processos que conformaram a cidade tal como é, não havia até então se pensado em locais próprios para celebrações aymaras, as quais costumam ser bastante recorrentes em suas manifestações comunitárias. Portanto, Mamani inseriu este modelo que aproveita o espaço da construção como local para festas no térreo e, nos pavimentos superiores, escritórios e a casa do proprietário no último pavimento.

A resistência e o empoderamento aymara também se deu na disputa pela prevalência de formas arquitetônicas andinas na paisagem de La Paz. Desde seu início, enfrentou (e enfrenta) forte oposição na academia, sendo deslegitimado por muitos dos principais arquitetos bolivianos. A oposição enfrentada por Mamani pode ser interpretada como fatores de classismo e racismo, expressões de ódio muito marcantes na sociedade boliviana, dado que a elite local, antes dominadora também da política, é majoritariamente branca e eurocêntrica, despreza os traços culturais e artísticos andinos.

Visto que boa parcela da comunidade acadêmica de arquitetos é composta por esta elite – dadas às dificuldades sociais de ingresso ao nível superior – Mamani conclui que, historicamente, as reproduções arquitetônicas em La Paz são influenciadas pelos modelos hegemônicos ocidentais, portanto são formas que não dialogam com as comunidades locais, tampouco com a cultura e a arte andina. Além disso, Mamani sente que devido à sua origem étnica aymara e o fato de sua formação não ser propriamente na Arquitetura, colaboram para a oposição feita ao seu estilo.

Os povos bolivianos possuem diversos elementos que são dignos de muito orgulho e admiração. No entanto, diversos processos históricos de dominação e exploração resultaram em uma das condições de pobreza e desigualdade social mais marcantes de nosso continente, com reflexos notáveis na paisagem de La Paz, a capital do Estado Plurinacional da Bolívia. Ainda assim, o espaço urbano da capital é palco de lutas e oposições inclusive no campo das formas arquitetônicas e o caso de Freddy Mamani é particularmente simbólico, pois se trata também de uma disputa do espaço urbano que perpassa imagens e signos culturais e artísticos de um povo cujo histórico é de opressão, mas que carrega em seu cotidiano manifestações de resistência e vida.

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Referências interessantes para consulta: 

O impacto do antipetismo nas eleições da capital paulista

Por Lucas Rocha
As eleições se foram e em São Paulo, a decisão já foi tomada em favor do candidato João Dória Jr. Que implicações podem ser feitas a partir deste fato?
Analisando em uma linguagem cartográfica, o mapa dos resultados das eleições, dividido por sub-região administrativa, mostra uma ampla vitória de Dória em quase todas as regiões da capital paulista. Dentre os votos válidos, o candidato do PSDB ganhou tanto nos bairros mais ricos do quadrante sudoeste, ganhou em todos os bairros de classe média (média alta e baixa) e ganhou na periferia também, vitórias significativas na Zona Leste, Zona Norte e Zona Oeste, única exceção feita nos distritos de Grajaú e Parelheiros, onde Marta teve vantagem, mas ainda sim Dória aparecia em segundo lugar com pouca desvantagem. Este mapa foi elaborado com base nos resultados das apurações eleitorais dos distritos do município e a Folha de São Paulo, acessível aqui.
Um fato interessante notado: bairros ricos e de classe média (Centro, ZS, ZL, ZN e ZO), em geral, elegeram Dória em primeiro lugar e, ainda com grande diferença, Haddad em segundo lugar. As periferias e bairros mais pobres da ZL e ZN elegeram Dória e em segundo lugar Russomanno. Marta só nos dois distritos mencionados acima, ficando Dória em segundo lugar, mas nos demais distritos periféricos da ZS, ele assume a liderança.
Tudo isto é resultado de processos há tempos em andamento no cenário político nacional e que tem desdobramentos únicos na capital paulista pelo seu perfil e importância no país. Há muito tempo, mas sobretudo após a vitória apertada de Dilma para a presidência, a construção de um discurso antipetista se acentuou e se consolidou na mídia. Evidentemente que o próprio PT teve muita culpa neste processo, pois decepcionou o país que o elegeu em meio a diversos esquemas de corrupção denunciados e julgados. O problema é quando os discursos culpabilizavam somente este partido como o grande mal nacional, mesmo esta mídia sabendo que a complexidade das ações políticas permeiam por diversos partidos e esferas de poder.
Logo, o poder esvaziou-se do Partido dos Trabalhadores. A incapacidade de reter o impeachment (que nitidamente não se sustentava juridicamente) inverteu os polos de poder da base do governo, fato que resultou na saída massiva da base de apoio de Dilma. O golpe foi dado e a imprensa comemorou. O simbolismo que isto carrega coroou o PT como o grande corrupto e corruptor do Brasil. Não importa que o ranking da corrupção diga outra coisa, ou que o Executivo e o Legislativo Federal passaram a ser comandados por partidos como o PMDB, PSDB e DEM, os campeões do ranking, o que importa é que o simbolismo do PT como o detentor de toda a corrupção e imoralidade foi extirpado do poder.
As eleições municipais foram um desencadeamento deste processo. No estado de São Paulo, de 72 prefeituras, o PT ficou apenas com 8. A perda na capital não foi um movimento das elites e das classes médias apenas. As amargas derrotas nas periferias evidencia uma total falta de diálogo que Haddad tinha com as mesmas.
Outro fator importante: no município de São Paulo, a maioria bruta representa votos em branco, votos nulos e abstenções, mais até que a quantidade de votos válidos do primeiro lugar. Ou seja, Dória se elegeu, mas não por vontade da maioria, mas por falta de credibilidade da maioria. A maioria absoluta, na verdade, não está interessada na política como ela tem sido feita. A maioria está descrente, desanimada, desgastada também. Este fator também explica a vitória em primeiro turno de Alckmin no estado.
Dória curiosamente emplacou sua campanha com a ideia de que “não é político”. Ora, todos nós somos seres políticos e sociais. Ele sabe disso, e além de ser político por natureza, ele é partidário filiado ao PSDB desde 2001. Evidente que o discurso dele estão implícitos outras questões, pois ao se desvincular sua imagem da de “político” [tradicional], ou seja, dos que correntemente roubam e praticam corrupção, Dória quer dizer que não é corrupto. Isso é bastante sério, pois reforça o senso comum de que “todo o político é ladrão”, impossibilitando retóricas críticas de que há exceções.
O prefeito eleito antipolítico também constrói sua imagem como um administrador de empresas prestes a gerir uma cidade. Ora, a prefeitura não é uma empresa privada, nem a administração pública pode ser entendida como tal. Isso descaracteriza a população de sua condição enquanto cidadãos, e os resinifica como clientes, consumidores, usuários, etc. É basicamente um jogo de conceitos que carregam profundas diferenças na práxis social e política, cujos direitos que nos são garantidos enquanto cidadãos encontram-se ameaçados em consequências do arrendamento de terras e empresas públicas para a inciativa privada, privatizando lucros e empobrecendo ainda mais a população. Ademais, a corrupção é presente na esfera da administração pública, tal qual também é presente na administração privada e na esfera cotidiana da sociedade. Atrelar a imagem de um empresário antipolítico como se isso o isentasse de ser corrupto é tremendamente desonesto.
Portanto, diversos elementos se convergiram: uma campanha milionária com maior tempo de TV e rádio de Dória (acusada de receber verbas públicas do seu padrinho Alckmin); diminuição das verbas da gestão atual da prefeitura para publicidade (destinada a outras áreas), o que lhe conferiu menos tempo de TV e rádio; insuficientes políticas públicas de impacto na periferia; deterioramento geral da imagem do PT enquanto partido; avanço da onda conservadora (presente em todo o mundo); desarticulação das frentes de esquerda por interesses únicos e convergentes; descrédito da atual política e das instituições;
O PT tem pagado um alto preço por ações decorrentes desde o tempo de Lula, em que não procurou investir (também) em educação libertadora, ou seja, educação crítica e formadora que fosse capaz de mudar o perfil brasileiro para um produtor em ampla escala de educação, ciência e tecnologia de ponta, ao passo em que se investiu muito na expansão do consumo – o que foi também importante, mas não estratégico ideologicamente a longo prazo. Da mesma forma, o partido paga um alto preço por se corromper, no plano federal, às mesmas práticas dos demais anteriores, levando ao lixo a ideologia de um partido que mudaria o cenário da política nacional, de um líder que poderia ter virado até mesmo um chefe das Nações Unidas, se quisesse, mas optou pelo conluio com os mesmos ratos de outrora, tudo pelo poder.
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O Partido dos Trabalhadores retrocedeu ao nível político que tinha nos anos 1990. Somente em candidaturas às prefeituras no Brasil, o número de 2016 encolheu ao patamar semelhante ao de 1996, sem contar as pouquíssimas que realmente conseguiu vitória. Fonte: Estadão, 08/08/2016. 
O argumento de não votar no PT para estas eleições municipais por causa da corrupção do partido, mas ao mesmo tempo eleger o PSDB como vencedor, é tão incoerente, vazio e alienado. Tal qual adjetivar e culpabilizar somente um único partido pela corrupção e livrar a cara do outro. Tudo isso em termos críticos e analíticos faz sentido, mas subestimamos a capacidade simbólica de mover a população e estigmatizar um partido, mesmo quando há bons governantes, exemplares internacionalmente, inclusive. Tudo isso cai por terra diante do poder sígnico reforçado por anos de que o PT é corrupto (apenas) e que “nossa bandeira jamais será vermelha”.
Eis aí a conclusão desta análise: as transformações sociais e geográficas não devem jamais menosprezar a capacidade do poder simbólico em modificar formações políticas e socioespaciais. Há máquinas da imprensa que trabalham por anos no plano ideológico da população, com discursos capilarizados e materializados nas TVs e rádios, que mesmo a população mais pobre hoje em dia tem acesso e compra (os discursos). A esquerda deve reconhecer isto e usar tal ferramenta como estratégia também para sua reconstrução. Resinificar o que é esquerda, qual é nossa luta e nossas pautas é fundamental e urgente, pois certamente esta onda trará consequências em 2018, que não está longe (menos de 2 anos, só). E construir espaços de diálogos é extremamente importante, pois os interesses hegemônicos se colocarão com força redobrada, portanto, ter a capacidade política de desconstruir isto, com novos atores, novas retóricas é necessário.
A ressaca da esquerda é boa para fazermos autocrítica, mas deve ser breve para não dormirmos no ponto.
Referências:
Estadão. PT encolhe candidaturas a patamar de 20 anos atrás. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pt-encolhe-candidaturas-a-patamar-de-20-anos-atras,10000067732
Folha de São Paulo. Alckmin paga 1,5 mi a Dória Jr., pré-candidato à prefeitura de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/09/1681027-gestao-alckmin-paga-r-15-mi-a-doria-jr-pre-candidato-a-prefeitura-de-sp.shtml
Folha de São Paulo. Mapa da apuração da cidade de São Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/eleicoes-2016/apuracao/mapas/capitais/#/municipio/sao-paulo/zona/1/bela-vista
Globo CBN. MP investiga irregularidades nas pré-campanhas de João Dória e mais dois vereadores. Disponível em: http://cbn.globoradio.globo.com/grandescoberturas/eleicoes-2016/2016/06/03/MP-INVESTIGA-IRREGULARIDADES-NAS-PRE-CAMPANHAS-DE-JOAO-DORIA-E-MAIS-DOIS-VEREADORES-EM.htm
SAKAMOTO, Leonardo. Blog do Sakamoto, UOL. Eleições 2016: a esquerda não está morta. Mas não será mais a mesma. Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2016/10/03/eleicoes-2016-a-esquerda-nao-esta-morta-mas-nao-sera-mais-a-mesma/

O Discurso e o Poder

Por Boaventura de Souza Santos*

 

Não restam dúvidas que a produção jurídica dos estados capitalistas contemporâneos, em geral, têm ao seu serviço um poderoso e complexo aparelho coercitivo detentor do monopólio da violência legítima, que envolve várias forças policiais, para-militares e militarizadas e, em caso de emergência, as próprias forças armadas, para além do universo totalitário das instituições que integram o sistema prisional. Este aparelho coercitivo, inscrito desde o início da lógica do modelo constitucional do estado liberal, está na raiz da conversão do direito em centro de disciplinação e de controle social do estado capitalista.

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Ação repressiva e coercitiva do Estado contra o direito de livre manifestação política dos cidadãos organizados do Passe Livre, na Avenida Paulista em 2013. Foto: Pedro Chavedar.

Uma das suas características principais reside em que a sua eficiência não resulta apenas das medidas efetivamente acionadas, mas também da simples ameaça do acionamento, isto é, do discurso da violência que, aliás, se nuns casos é verbal, noutros resulta tão só da presença demonstrativa (agressivamente silenciosa e silenciante) dos artefatos da violência legal. E entre a repressão da transgressão e a ameaça há ainda que referir o domínio crescentemente importante da repressão preventiva, isto é, o conjunto de medidas acionadas para desmantelar tudo o que o aparelho coercitivo define como plano de transgressão da legalidade.

Pode mesmo dizer-se que o dispendioso apetrechamento tecnológico e profissional do aparelho coercitivo das sociedades capitalistas avançadas nos últimos anos tem  visado sobretudo a repressão preventiva. Por outro lado, estando embora o acionamento dos mecanismos de controle violento subordinado a normas e regulamentos gerais, o critério de eficiência tende crescentemente a dominar o critério de legalidade, o que, de resto, é facilitado pela invisibilização do controle por via da sofisticação tecnológica com que é executado.

Por outras palavras, o controle torna-se tanto mais íntimo quanto mais remoto. Apoiado neste forte e diversificado dispositivo de coerção, o direito do estado capitalista procede à consolidação (contraditória) das relações de classe na sociedade, gerindo os conflitos sociais de modo a mantê-los dentro de níveis tensionais toleráveis do ponto de vista da dominação política de classe que ele contraditoriamente reproduz.

Referência:

SANTOS, Boaventura de Souza. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra, número especial em homenagem ao Prof. Dr. J. J. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1979, pp. 278 – 279. (Grifos do Blog)

*Boaventura de Souza Santos é professor de Direito e Sociologia na Universidade de Coimbra, Portugal. É internacionalmente reconhecido como um dos grandes expoentes das Ciências Sociais, com publicações em português, inglês, espanhol, francês e alemão.

A Sociedade do Espetáculo

O filósofo francês Guy Debord publicou a obra chamada “A Sociedade do Espetáculo” em 1967, pouco antes das agitações sociais que ocorreram em Paris em 1968, motivo que colaborou para o conhecimento e maior abrangência de seu livro. O livro compreende uma série de teses apresentadas em parágrafos ou versículos, fato que torna a leitura mais dinâmica que o comum do que outros livros. Algumas dessas teses – o primeiro capítulo – nós disponibilizaremos aqui abaixo para que o leitor possa ter acesso a alguns de seus conteúdos, no mesmo formato em que se encontra o livro, para quem sabe, tomar curiosidade pelo restante da obra.

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Imagem extraída do documentário “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord.

O que é bastante interessante é que Debord constrói uma crítica ao nosso modelo de sociedade atual – ainda que nos moldes dos anos 1960. A espetacularização analisada pelo autor trata-se de uma série de mecanismos de alienação da sociedade em meio ao seu processo de produção e consumo. As mercadorias adquiriram um valor simbólico e sígnico que carregam desejos e intencionalidades na indução ao consumo, ao passo que também a televisão e outros meios de comunicação estimulam mais ainda a alienação do sujeito aos processos produtivos atuais. Entretanto, Debord não limita sua crítica somente ao espetáculo da imagem da mercadoria no mundo capitalista, ele a estende para uma crítica ao espetáculo da imagem produzida pelo Estado, da ideologia, exibidas no então mundo socialista. Aprofundando-se em diversos conceitos marxistas, inclusive, o autor abarca em sua crítica análises e críticas desde o socialismo científico do século XIX, o anarquismo de Bakunin, Lênin, Trotsky e Stalin no decorrer do livro – importantíssimo também para setores da esquerda lerem e fazerem auto-críticas.

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Imagem extraída do documentário “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord.

Portanto, em termos gerais, esta obra continua absolutamente atual e útil para levar ao questionamento os modos de produção correntes em nossos dias, uma vez que os mesmos se intensificaram da época de Debord para cá. A sociedade do espetáculo encontra-se palpável em nossas mãos por meio das redes sociais, dos smart phones, das novas mídias informacionais. Mais do que nunca, inclusive, os modos de produção capitalistas nos separam da realidade, nos inserem em um mundo de alienações em imagens, um mundo de espetáculos rodeados pela esfera do consumismo supérfluo. Ressaltamos a necessidade de guardar o caráter dialético na leitura, pois em todo o processo há resistências, formas de negação da homogeneização, que resguardam a contradição nos fenômenos.

Para quem tiver maior interesse, a obra também existe em formato de documentário produzido pelo próprio Debord na época. O link para assistir com legendas em português encontra-se aqui. Esperamos que tenham todos e todas uma ótima leitura e boas reflexões.

Lucas Rocha

 

A Sociedade do Espetáculo

Por Guy Debord


Capítulo I – A separação consolidada

“Nosso tempo, sem dúvida… prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… O que é sagrado para ele, não passa de ilusão, pois a verdade está no profano. Ou seja, à medida que decresce a verdade a ilusão  aumenta, e o sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.”
Feuerbach – Prefácio à sefunda edição de A Essência do Cristianismo

 

(1) Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação.

(2) As imagens fluem desligadas de cada aspecto da vida e fundem-se num curso comum, de forma que a unidade da vida não mais pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente reflete em sua própria unidade geral um pseudo mundo à parte, objeto de pura contemplação. A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.

(3) O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada.

(4) O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizadas por imagens.

(5) O espetáculo não pode ser compreendido como abuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é a expressão de uma Weltanschauung, materialmente traduzida. É uma visão cristalizada do mundo.

(6) O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente na vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e no seu corolário – o consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação principal do tempo vivido fora da produção moderna.

(7) A própria separação faz parte da unidade do mundo, da práxis social global que cindiu em realidade e imagem. A prática social, diante da qual surge o espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao ponto de apresentar o espetáculo como sua finalidade. A linguagem do espetáculo é constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo o princípio e a finalidade última da produção.

(8) Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.

(9) No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento falso.

(10) O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências organizadas socialmente, que devem, eles próprias, serem reconhecidas na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível.

(11) Para descrever o espetáculo, a sua formação, as suas funções e as forças que tendem para a sua dissolução, é preciso distinguir seus elementos artificialmente inseparáveis. Ao analisar o espetáculo, fala-se em certa medida a própria linguagem do espetacular, no sentido de que se pisa no terreno metodológico desta sociedade que se exprime no espetáculo. Mas o espetáculo não significa outra coisa senão o sentido da prática total da formação econômico-social, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.

(12) O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.

(13) O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato dos seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.

(14) A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculista. No espetáculo da imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si mesmo.

(15) Na forma do indispensável adorno dos objetos hoje produzidos, na forma da exposição geral da racionalidade do sistema, e na forma de setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual.

(16) O espetáculo submete para si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores.

(17) A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer, de forma que todo o “ter” efetivo perde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim, toda a realidade individual se tornou social e diretamente dependente do poderio social obtido. Somente naquilo que ela não é, lhe é permitido aparecer.

(18) Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão, o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.

(19) O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da atividade dominada pelas categorias do ver, assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.

(20) A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica  espetacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre das vidas que se toma opaca e irrespirável. Ela já não reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraíso. O espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no interior do homem.

(21) À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que ao cabo não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.

(22) Destituída de seu poder prático, e permeada pelo império independente no espetáculo, a sociedade moderna permanece atomizada e em contradição consigo mesma.

(23) Mas é a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espetáculo. O espetáculo é, assim, uma atividade especializada que fala pelo conjunto das outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida, onde o mais moderno é também o mais arcaico.

(24) O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder no momento da sua gestão totalitária das condições de existência. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetáculo não é necessariamente um produto do desenvolvimento técnico do ponto de vista do desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, pelo contrário, uma formulação que escolhe o seu próprio conteúdo técnico. O espetáculo, considerado sob o aspecto restrito dos “meios de comunicação de massa” – sua manifestação superficial mais esmagadora – que aparentemente invade a sociedade como simples instrumentação, está longe da neutralidade, é a instrumentação mais conveniente ao seu auto-movimento total. As necessidades sociais da época em que se desenvolvem tais técnicas não podem encontrar satisfação senão pela sua mediação. A administração desta sociedade e todo o contrato entre os homens já não podem ser exercidos senão por intermédio deste poder de comunicação instantâneo, é por isso que  tal “comunicação” é essencialmente unilateral; sua concentração se traduz acumulando nas mãos da administração do sistema existente os meios que lhe permitem prosseguir administrando. A cisão do Estado moderno, a forma geral da cisão na sociedade, o produto da divisão do trabalho social e o órgão da dominação de classe.

(25) A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, constituiu a primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a ordenação cósmica e ontológica que correspondia aos interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a sociedade não podia fazer. Todo o poder separado foi pois espetacular, mas a adesão de todos a uma tal imagem imóvel não significava senão o reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da atividade social real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária. O espetáculo moderno exprime-se, pelo contrário, o que a sociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitido opõe-se absolutamente ao possível. O espetáculo é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência. Ele é o seu próprio produto, e ele próprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostra o que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento da produtividade por intermédio do refinamento incessante da divisão do trabalho na parcelarização dos gestos, desde então dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao longo deste movimento, no qual as forças que puderam crescer, separando-se, ainda não se reencontraram.

(26) Com a separação generalizada do trabalhador daquilo que ele produz perde-se todo o ponto de vista unitário sobre a atividade realizada, perde-se toda a comunicação pessoal direta entre os produtores. Na senda do progresso da acumulação dos produtos separados, e da concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se atribuições exclusivas da direção do sistema. O êxito do sistema econômico da separação significa a proletarização do mundo.

(27) O próprio êxito da produção separada enquanto produção do separado, experiência fundamental ligada às sociedades primitivas, desloca-se no pólo do desenvolvimento do sistema, para o não-trabalho, para a inatividade. Mas esta inatividade não é em nada liberta da atividade produtiva: depende desta, uma submissão inquieta e contemplativa às necessidades e aos resultados da produção; ela própria é um produto da sua racionalidade. Nela não pode haver liberdade fora da atividade. No quadro do espetáculo toda a atividade é negada, exatamente pela atividade real ter sido integralmente captada para a edificação global resultante. Assim, a atual “libertação do trabalho”, o aumento dos tempos livres, não é de modo algum libertação no trabalho, nem libertação de um mundo moldado por este trabalho. Nada da atividade roubada no trabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado.

(28) O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento fundamenta a técnica, e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das “multidões solitárias”. O espetáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.

(29) A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado.

(30) A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; Quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta.
Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma, porque o espetáculo está em toda a parte.

(31) O trabalhador não produz para si próprio, ele produz para um poder independente. O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos  alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio.

(32) O espetáculo na sociedade representa concretamente uma fabricação de alienação. A expansão econômica é principalmente a expansão da produção industrial. O crescimento econômico, que cresce para si mesmo, não é outra coisa senão a alienação que constitui seu núcleo original.

(33) O homem alienado daquilo que produz, mesmo criando os detalhes do seu mundo, está separado dele. Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais se separa dela.

(34) O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem.

 

Referência: 

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Projeto Periferia, 2003. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf

 

 

A Geografia da Homofobia

Por Lucas Rocha

 

A data de 28/06 é reconhecida por ser o Dia Internacional do Orgulho LGBT. O simbolismo desta data marca o levante feito por LGBTs¹ contra os ataques frequentes de policiais de Nova York no bar Stonewall Inn, em 1969. A revolta mobilizou centenas de LGBTs a se posicionarem nas proximidades do bar, impedindo os policiais de realizarem batidas e prenderem pessoas. O levante se estendeu também por várias noites seguintes, dando visibilidade a pautas indiscutíveis na sociedade norte-americana de então: a liberdade dos direitos sexuais, ou seja, a liberdade de se expressar sobre quem você é, seja sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero².

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“Stonewall significa revidar! Acabe com a opressão gay!” – cartaz no levante de Stonewall Inn, em Nova York, em 1969.

A partir de então, o movimento tornou-se amplamente conhecido e o ativismo LGBT passou a agregar as reivindicações dos Direitos Humanos juntamente com o Movimento Feminista e o Movimento Negro. O levante em Stonewall Inn em 28 de Junho de 1969 tornou-se simbólico também pelo fato de iniciar, nos anos posteriores, as Paradas do Orgulho LGBT nos Estados Unidos e, posteriormente, em diversos outros países mundo afora.

 

Desde então, muita luta, muitos protestos e, infelizmente, muito sangue tem sido derramado para que algumas conquistas fossem alcançadas. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou [finalmente] a homossexualidade do Cadastro Internacional de Doenças – CID -, muito embora, infelizmente, a transexualidade ainda conste no cadastro hoje, e a Anistia Internacional passou a considerar como violação aos Direitos Humanos os episódios de preconceito a homossexuais. Entretanto, ainda hoje, é possível se observar tanto no Brasil, quanto mesmo em países cuja legislação sobre direitos LGBTs são avançadas, certos políticos e líderes religiosos referirem-se à homossexualidade como doença e, em outros casos, promovendo tratamentos de “cura”.

Em muitos países, LGBTs são considerados cidadãos de segunda classe, pois sua sexualidade é considerada crime, cujas punições podem variar entre violência moral e física até a morte. Em geral, os piores países para ser LGBT são países onde as políticas civis estão submetidas ao entendimento religioso, frequentemente países islâmicos, no entanto, há países cristãos também, onde a legislação é desfavorável à existência de LGBTs.

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Mapa realizado pelo portal G1, com base nos dados da ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association) mostra com mais detalhes onde a legislação ampara, em alguma medida, a existência, o reconhecimento ou possibilita o casamento homoafetivo no mundo.

Portanto, relações homoafetivas são consideradas como crime em 73 países, dentre os quais 13 preveem pena de morte. Em países como a Rússia, é expressamente proibido contar a crianças que LGBTs existem!

LGBTfobia no Brasil

A situação no Brasil também é bastante crítica. Embora o mapa indique o Brasil como um país progressista no que se refere aos direitos LGBT havendo artifícios jurídicos que possibilitem a oficialização do casamento homoafetivo desde 2011, além de contarmos com a maior Parada do Orgulho LGBT do mundo, em São Paulo (cerca de 3 milhões de pessoas), já existente anualmente há 20 anos, desde 1996, infelizmente possuímos índices extremamente alarmantes sobre homofobia, lesbofobia, bifobia e transfobia³.

Vale ressaltar que a decisão jurídica que possibilitou a oficialização do casamento homoafetivo no Brasil em 2011 foi conduzida com unanimidade pelo Superior Tribunal Federal (STF), ou seja, uma matéria que deveria ter sido tratada essencialmente pelo Poder Legislativo e nunca foi levada adiante no Congresso por articulações políticas (não discussões do ponto de vista legislativo, portanto) – as quais sabemos todos as motivações: fortes lobbies religiosos e conservadores que impedem discussões de nível progressistas. Evidentemente que nos felicitamos com a iniciativa do STF e, ainda que não equivalha como lei, é matéria definida no campo jurídico e obrigatória sua efetivação nos cartórios de todo o Brasil.

A Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos divulgou o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil referente ao ano de 2013 e levantou dados alarmantes: um total de 1965 denúncias de 3398 violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 1906 vítimas 2461 suspeitos. Dados estatísticos levantados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) apontam que, em 2014, 326 pessoas morreram por LGBTfobia, uma média assustadora de 1 assassinato a cada 27 horas. O pior disso tudo é saber que todos esses dados estão longe de corresponder com a totalidade de crimes ocorridos, os quais terminam por ser relacionados a situações de crimes comuns, portanto, não há clareza sobre a quantidade exata de crimes homofóbicos e/ou transfóbicos.

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Mapa elaborado pelo jornal Brasil Post sobre o número de incidências de casos LGBTfóbicos no País em 2013, com base nos dados do GGB.

Ainda que o Mapa da Homofobia apresente uma certa frequência de casos em alguns estados e esteja quase zerado em outros, não podemos desconsiderar o fato de que há carência de dados justamente porque os casos de homofobia e/ou transfobia não são tratados como tais. Crimes de ódio que tiveram na natureza do ato a motivação contra a orientação sexual ou identidade de gênero são desconsiderados e tratados como crimes comuns e “diluídos” nas estatísticas de violência do País, ou seja, apagados, silenciados.

A LGBTfobia, no entanto, ainda permeia o cotidiano brasileiro de forma recorrente e silenciada. Poucos são os casos que ganham notoriedade na imprensa, geralmente os crimes mais perversos e emblemáticos que envolvem estupros, esquartejamentos e ateamento de fogo no corpo da vítima. Contudo, dia após dia, muitos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais são ofendidos, xingados, violentados, agredidos e mortos seja em grandes cidades ou no interior. Seja dentro de casa ou na balada, seja na luz do dia ou na escuridão da noite.

Cotidianamente a violência moral contra LGBT encontra-se institucionalizada nos Poderes Constitucionais no Brasil. Há no Congresso Nacional bancadas formadas por parlamentares conservadores, reacionários e religiosos fundamentalistas que promovem um verdadeiro desserviço aos Direitos LGBTs (ou seja, aos Direitos Humanos), dentre eles, os mais notáveis são Jair Bolsonaro, Marco Feliciano e Eduardo Bolsonaro. Os discursos de intolerância e ódio desses deputados, além dos demais que compõem a bancada, já impediram progressos importantes contra a homofobia e a transfobia nas escolas, barrando projetos essenciais tais como o do kit Anti-Homofobia, maliciosamente apelidado e estigmatizado como “kit-gay”. O único objetivo do projeto era possibilitar que crianças e adolescentes crescessem entendendo a diversidade da humanidade, sabendo que existem LGBTs e que todos somos iguais e merecemos ser tratados com respeito e dignidade.

Outras vozes que brandam a LGBTfobia são as de líderes religiosos, mais precisamente pastores e padres conhecidos, os quais usam a liberdade de expressão religiosa como escudo para destilarem opiniões preconceituosas, tal como o Pr. Silas Malafaia. Infelizmente, as vozes dessas pessoas são ouvidas e acatadas por massas de milhões de pessoas, fato que dificulta o convívio pacífico e a tolerância social para com LGBTs no Brasil. Opiniões de cunho religioso têm sido usadas como argumentos políticos, inclusive, para impossibilitar o reconhecimento do casamento civil homoafetivo, a adoção de crianças por casais homoafetivos a própria constituição do conceito de família. Incrivelmente, não há lei que criminalize a homofobia no País, portanto, todos os que discursam com intolerância contra LGBTs no Congresso, na TV ou nas igrejas permanecem ilesos.

A violência também é comum já dentro de casa, lugar onde crianças LGBTs ouvem discursos de ódio e intolerância dos próprios pais desde cedo, ou fingem que são héteros para serem aceitos na família e com os amigos, vivendo no armário uma vida de farsas e mentiras, destruindo a si mesmos, ou vivendo uma vida de preconceitos e desaprovações por parte dos familiares e grupos sociais. Muitos e muitas, sobretudo travestis e transexuais, acabam sendo expulsas de casa logo cedo pela incapacidade da família em fornecer o suporte e o o entendimento sobre a identidade de gênero da criança ou adolescente. Este é o momento em que muitas travestis e transexuais tornam-se moradoras de rua e/ou partem para a prostituição como forma de sobrevivência, uma vez que já evadiram da escola e não lhes restam mais um futuro digno com estudo e formação.

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Travestis trabalhando na prostituição nas ruas.

Muitas travestis e transexuais inserem-se, consequentemente, no mundo do crime. Este cenário trágico e lamentável é frequentemente ignorado pelo Poder Público. Tentativas de políticas públicas que possibilitem a transexuais e travestis de se inserirem no mercado de trabalho formal com condições dignas são ainda raras e vanguardistas no Brasil (e no mundo) – como o Projeto Transcidadania, da Prefeitura de São Paulo.

A luta de LGBTs pela criminalização da homolesbotransfobia é extremamente necessária para darmos um passo adiante em vista de uma sociedade mais justa e mais tolerante. A liberdade de expressão ou a liberdade religiosa não devem servir de escudos ou argumentos para estimular o preconceito, a segregação ou o ódio a LGBTs em virtude de suas condições de orientação sexual e identidade de gênero. Assim como a legislação já prevê punições para quem discrimina em virtude do gênero feminino ou da cor/raça, faltam leis específicas que projetam LGBTs de sofrerem preconceitos e crimes de ódio com motivação própria. Neste campo, existe um hiato legal que ainda é usado para legitimar toda a sorte de discriminações e silenciar crimes de ódio. Este hiato, portanto, deve ser preenchido o mais rápido possível antes que mais tragédias ocorram!

O resgate ao valor de dignidade da pessoa é fundamental para alterar a lógica de exclusão e vulnerabilidade social que os grupos LGBT têm sido expostos. Neste caso, a educação é a principal estratégia para se mudar a sociedade e desconstruir preconceitos que segregaram por gerações milhões de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, além de políticas públicas que possibilitem a reinserção dos grupos mais vulneráveis à dignidade, a terem possibilidade de um futuro diferente e leis que punam crimes de ódio em função da sexualidade das pessoas. Com esses três elementos em conjunto, sendo o maior deles o investimento na educação das pessoas, podemos construir um futuro mais inclusivo e tolerante.

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¹. LGBTs é a sigla formada pelas palavras Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Embora seja o acronismo mais usado, há outras formas frequentes que também visibilizam grupos como Pansexuais, Assexuais, Intersex, Queers, ou o sinal + para identificar variadas outras classificações de gênero. 

². De forma sucinta, entende-se que orientação sexual refere-se à orientação do desejo sexual e/ou afetivo de uma pessoa por outra pessoa do mesmo gênero. Sendo assim, na sigla LGBT temos as lésbicas, gays e bissexuais que são os grupos cuja a orientação sexual é discordante da norma heterossexual, portanto, são homossexuais ou bissexuais. 
A sigla também abrange a população T referindo-se à identidade de gênero das pessoas. Ou seja, a identidade de gênero é o gênero pelo qual a pessoa se identifica no decorrer de sua vivência. O gênero compõe-se de uma construção cultural e social, resultado em papeis de gênero na nossa atual sociedade. Logo, uma pessoa cuja genitália seja masculina e identifica-se como homem, é uma pessoa cisgênero. O mesmo vale para uma pessoa cuja genitália seja feminina e ela se identifique como mulher.
A transexualidade dá-se quando a pessoa não se identifica com o gênero pelo qual lhe foi atribuído. Ou seja, é a lógica inversa das pessoas cisgêneros. 
A travestilidade perpassa a transexualidade no sentido em que não há identificação com a lógica binária homem/mulher. A pessoa entende que seu gênero é não-binário, ou seja, não se limita às classificações masculinas ou femininas para se definir, muito embora a maioria das travestis sejam lidas socialmente com uma aparência feminina. 

³. Existe a necessidade de se enfatizar na diferença conceitual dos tipos de violência sofridos por cada um das letras LGBT, pois há particularidades que um tipo sofre e que outro grupo não sofre. Por isso a ênfase na homofobia (violência moral e física contra gays), lesbofobia (contra lésbicas), bifobia (contra bissexuais) e transfobia (contra a população T). Eis, então, a necessidade de se utilizar LGBTfobia. 

Referências:

Araújo, Thiago. Uma morte LGBT acontece a cada 28 horas motivada por homofobia. Huffpost Brasil, 2014.

BRASIL. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Relatório da Violência Homofóbica no Brasil: ano 2013. Brasília, 2013.

Barros, Ana Cláudia. Homofobia motivou um assassinato a cada 27 horas em 2014 no Brasil. Portal R7, 2015.

Mantovani, Flávia. Relações homossexuais é crime em 73 países; 13 preveem pena de morte. Portal G1, 2016.

Rosa, Ana Beatriz. Violência homofóbica: Brasil tem 5 denúncias por dia, mas números reais são muito maiores. Huffpost Brasil, 2016.

SÃO PAULO (município). Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo. Projeto Reinserção Social Transcidadania. São Paulo, 2016.

UOL. Entenda as diferenças entre o casamento gay dos EUA e o do Brasil. São Paulo, 2015.

 

 

 

 

Há cidadãos neste país?

Por Milton Santos

Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que não o são? O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se de um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna.

O discurso das liberdades humanas e dos direitos seus garantidores é, certamente, ainda mais vasto. Tantas vezes proclamando e repetido, tantas vezes menosprezado. É isso, justamente, o que faz a diferença entre a retórica e o fato. O respeito ao indivíduo é a consagração da cidadania, pela qual uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo de direitos concretos individualizados. A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância.

A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna um estado de espírito, enraizado na cultura. É, talvez, nesse sentido, que se costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista, uma conquista a se manter. Ameaçada por um cotidiano implacável, não basta à cidadania ser um estado de espírito ou uma declaração de intenções. Ela tem o seu corpo e os seus limites como uma situação social, jurídica e política. Para ser mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis, mediante dispositivos institucionais que assegurem a fruição  das prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito de reclamar e ser ouvido.

A cidadania pode começar por definições abstratas, cabíveis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válida deve poder ser reclamada. A metamorfose dessa liberdade teórica em direito positivo depende de condições concretas, como a natureza do Estado e do regime, o tipo de sociedade estabelecida e o grau de pugnacidade que vem da consciência possível  dentro da sociedade civil em movimento. É por isso que, desse ponto de vista, a situação dos indivíduos não é imutável, está sujeita a retrocessos e avanços. Os homens, pela sua própria essência, buscam a liberdade. Não a procuram com a mesma determinação porque o seu grau de entendimento do mundo não é o mesmo. As sociedades, pela sua própria história, são mais ou menos abertas às conquistas do homem.

E os Estados nem sempre coincidem com a sociedade civil, mas, ao contrário, refreiam-lhe os impulsos, e frequentemente desrespeitam os indivíduos, sob as justificativas e disfarces mais diversos. A dialética  da vida social leva em conta o movimento desses fatores: o dado institucional, o dado econômico, o dado cultural e o dado individual interdependem e interagem.

F. C. Weffort (1981, pp. 139-140) mostra como, no seu clássico Citizenship and Social Class, Marshall reconheceu no interior das democracias modernas a existência de uma tensão permanente, uma “guerra”, diz ele em determinado momento, entre o princípio de igualdade implícito no conceito de cidadania e a desigualdade inerente ao sistema capitalista e à sociedade de classes (Marshall, 1965m p. 92).

Países com tradição de cidadania e outros não?

A cidadania evolui por meio de um processo de lutas e desenvolvidas paralelamente em diversos países, que leva da condição de “membro da sociedade nacional” no século XVII*, ao “direito de associação” no século XIX**, até serem alcançados os “direitos sociais” em pleno século XX***. Em um belo ensaio, Tereza Haguette (1981-1982) descreve a evolução que começa com a aquisição do status de cidadão, membro de uma sociedade civil reconhecida como tal, isto é, a conquista de direitos políticos individuais, prossegue com o reconhecimento de direitos coletivos, pertinentes  aos grupos que constituem a coletividade nacional e autorizados a formar associações representativas legitimadas, até aqui “um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantiriam ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação na herança social”.

A própria palavra cidadão vai se impor com a grande mutação histórica marcada na Europa com a abolição do feudalismo e o início do capitalismo. Marx e tantos outros autores saudaram a chegada do capitalismo com a abolição de vínculos de servidão entre o dono da terra e “seu” trabalhador, e o surgimento do trabalhador livre, dono dos meios de produção. As aglomerações humanas, os burgos, foram o teatro principal dessa luta e o palco dessa enorme conquista. Com o homem do burgo, o burguês, nascia o cidadão, o homem do trabalho livre, vivendo num lugar livre, a cidade.

Assim, com a passagem do feudalismo para o capitalismo, a do trabalho servil para o trabalho livre não se deu de uma noite para o dia. O processo de formação da cidadania não foi tão brutal como equivocadamente podem pensar os observadores longínquos da história, considerando os eventos como se fossem um ponto fixo no tempo. As relações sociais feudais e a forma de trabalho correspondente geraram, lentamente, um novo caldo de cultura, assentando as bases de um pensamento revolucionário e de sua expansão, oferecendo à rebeldia os fundamentos de um êxito que iria desembocar em novas relações sociais e de trabalho.

As conquistas cidadãs não ficaram aí. A prática dessa porção de liberdade adquirida foi  o aprendizado para novas liberdades, até que se chegasse às ideias modernas de sociedade civil, um corpo social que só existe porque há homens ciosos dos seus direitos; e existe a despeito do Estado. Não fora assim e o ideário liberal não se teria alastrado na Europa e, dela, não se teria transferido para outros continentes. É assim que esse projeto chega aos Estados Unidos, fazendo desse país seu principal bastião.

O fato, porém, é que não é lícito confundir o liberalismo de Tocqueville ou o cidadão da era do capitalismo concorrencial com o cidadão da era teletrônica. Impõe-se a necessidade de atualização do conceito e do instituto correspondente.

Em diversos países – e isso em maior ou menor grau -, o ideário da cidadania e a legislação correspondente foram se adaptando. A herança cultural, as novas ideias políticas, as novas realidades do mundo do trabalho, as novas definições do intercâmbio social foram os fermentos dessa mudança. As revoluções socialistas, desejosas de romper com as relações sociais impostas pelo capitalismo e de reconhecer os direitos das massas, tiveram, também, um papel dialético nessa transformação, ainda que críticos atuais do que chamam o “socialismo real” protestem contra a ausência de conteúdo liberal na promoção social empreendida no leste.

Notas:
*. “Com relação ao conceito de cidadania […] uma rápida incursão histórica nos mostra que, no século XIX, com a emergência do Estado-nação em toda a Europa, este conceito adquiriu um importante elemento: a qualidade de membro. Pelo simples fato de ser membro de um Estado-nação, todos os habitantes ascendiam ao status de cidadão, apesar de que o mais elevado direito do cidadão, o direito político de participar da construção da sociedade, se efetivaria somente através do voto. Até um passado bem recente – início do século XX – este direito era reservado a alguns […]” (T. Haguette, 1981-1982, p. 123).
**. “No século XIX, o direito de associação – que representa um importante direito político – foi incorporado ao status da cidadania, proporcionando as bases para a classe trabalhadora adquirir direito político. Em outras palavras, enquanto os direitos civis eram essencialmente individuais, o direito de assiciação deu poder aos grupos de se fizerem ouvir” (idem, p. 124). 
***. “Finalmente, já em meados do século XX, um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantia ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação na herança social. O exercício destes direitos é, ainda hoje, privilégio dos países já integrados ao sistema do welfare state” (idem, ibidem). 

Neoliberalismo e cidadania atrofiada

A grande crise econômica em que vivemos conduziu a certos retrocessos em matéria de conquistas sociais e políticas. O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que prega a abstenção estatal na área produtiva, atribui ao Estado capitalista uma grande cópia de poder sobre os indivíduos, a título de restaurar a saúde econômica e, assim, preservar o futuro. A alegação do que o grande desemprego é necessário para aumentar o emprego daqui a alguns anos é um desses argumentos consagrados para justificar uma recessão programada. Os “socialistas reais” também prometem, a partir das restrições atuais às liberdades clássicas, um sistema social em que, no futuro, a intervenção autônoma do Estado (separado da sociedade civil) será minimizada, se são abolida, na regulação da vida social.

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“Bolsa por 32 euros – comida de 1 semana por 4 euros”. O nosso atual modelo econômico altera a lógica de direitos das pessoas nas sociedades, tonando-as antes consumidoras do que cidadãs – portadoras de direitos sociais básicos. Foto: Gutewebung/ ONG Cordaid.

Um traço comum a esses países vem, todavia, do fato de que neles houve condição para que a luta histórica pela conquista dos direitos dos cidadãos abrangesse, ao longo do tempo, parcela considerável da população imbuída, consciente ou inconsciente, da ideia de sociedade civil e da vocação de igualdade. A instalação de tal estado de espírito e  de tal estado de coisas precede à implantação das grandes mudanças sociais que viriam comprometê-los: o papel da máquina e do industrialismo no intercâmbio social, o uso da astúcia ou da força nas relações internacionais, a chegada do capitalismo corporativo e a instrumentalização das relações interpessoais, a vitória do consumo como fim em si mesmo, a supressão da vida comunitária baseada na solidariedade social e sua superposição por sociedades competitivas que comandam a busca de statos e não mais de valores. Em tais sociedades corporativas, reina a propaganda como fazedora de símbolos, o consumismo como seu portador, a cultura de massas como caldo de cultura fabricado, a burocracia como instrumento e fonte de alienação.

Esse quadro, hoje comum a todos os países capitalistas, ganha ainda mais nitidez nos países  subdesenvolvidos como o nosso.

É necessário lembrar que, para muitos países do Terceiro Mundo, o empobrecimento da moralidade internacional atribuiu aos imperativos do progresso  a presença  de regimes fortes, as distorções na vida econômica e social, a supressão do debate sobre os direitos dos cidadãos, mesmo em suas formas mais brandas.

Deixaram de ser permitidos: a defesa do direito ao trabalho e a uma remuneração condigna, o reclamo dos bens vitais mínimos, o direito à informação generalizada, ao voto e, até mesmo, a salvaguarda da cultura.

O não-cidadão do Terceiro Mundo

Mas há cidadania e cidadania. Nos países subdesenvolvidos, de um modo geral, há cidadãos de classes diversas; há os que são mais cidadãos, os que são menos cidadãos e os que nem mesmo ainda o são. Para Tereza Haguette (1981-1982), o escopo da cidadania “não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites”*. Trata-se, devemos ressaltar, de escopo outorgado, estabelecido pelos que mandam, mas jamais de escopo finalístico a atingir. É certo que a cidadania  se realiza segundo diversas formas, mas não podemos partir do princípio de que homens livres possam ter respostas diferentes aos seus direitos essenciais apenas pelo fato de viverem em países diferentes. A própria autora, aliás, falando do estado de bem-estar (p. 124), critica o fato de que o exercício dos direitos correspondentes seja, ainda hoje, um privilégio de alguns países.

Nota: 
*. “[…] a cidadania, como subdesenvolvimento, está associada à divisão internacional do trabalho. Seu escopo não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites. Em uma economia mundial baseada em metrópoles politicamente fortes e satélites nacionais fracos, a cidadania – como a riqueza e o desenvolvimento econômico – é desigual e estratificada” (T. Haguette, 1981-1982, p. 125). 

A elaboração brasileira do não-cidadão

O caso brasileiro tem de ser analisado sob essa luz, na medida em que tais fatores, escalonados no tempo nos países do Norte, aqui aparecem e se implantam de uma só vez. A convergência de várias causas, ao mesmo tempo revolucionárias e dissolventes, iria ter um impacto fortemente negativo no processo de formação  da ideia de cidadania e da realidade do cidadão. Mas nesta, como em outras questões, há uma especialidade brasileira a realçar.

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Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é o instrumento da busca da ascensão social. Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário.

Em menos de trinta anos, isto é, no espaço de uma ou duas gerações, essas transformações se deram concomitantemente no Brasil, o que multiplicou exponencialmente o seu potencial já por si só negativo, sobretudo porque a classe média então criada já nascia debaixo das influências indicadas acima. Na realidade, tais mudanças perversas não apenas se deram paralelamente, mas sistematicamente, o que acentua a sua força ideológica, na medida em que os fenômenos correspondentes acabam por se justificar a partir de suas próprias relações causais, isto é, naturalmente. O quadro não está, certamente, completo.

Com certeza não saberíamos empreender a imensa lista de variáveis com valor explicativo, mas temos de acrescentar, pelo menos, mais duas, extremamente imbricadas com as demais. Uma é a imersão do país, desde praticamente o fim da Segunda Guerra Mundial, em um clima de guerra fria e o concomitante engajamento em uma política econômica subordinada à Aliança Atlântica. Essa causa é muito pouco mencionada quando se deseja equacionar a problemática nacional, mas realmente está presente na equação política internacional e interna, na condução da economia, na conformação da sociedade e na moral correspondentes, tanto quanto na configuração territorial.

O modelo econômico que conduziu ao chamado “milagre econômico” vai buscar suas raízes nos mesmos postulados  que levaram à supressão das liberdades civis, acusadas então como um fermento deletério, capaz de levar o país à anarquia. Trata-se, também, de um modelo político e social, responsável tanto pela eliminação do embrião de cidadania que então se desenvolvia, como pela opção de alargamento de uma nova classe média em detrimento da massa de pobres que o “milagre” não apenas deixou de suprimir, como também aumentou*. O crescimento econômico assim obtido, fundado em certos setores produtivos e baseado em certos lugares, veio a agravar a concentração da riqueza e as injustiças, já grandes, de sua distribuição. Entre as pessoas e entre os lugares. Como tal crescimento se fazia paralelamente ao apelo a um consumo impossível de se generalizar, as linhas de crédito abertas para fortalecer os produtores ajudaram a agravar as desigualdades e santificar as distorções. O equipamento do país, destinado ao escoamento mais frágil e mais rápido dos produtos, serviu, ao modelo econômico que o gerou, para a criação do modelo territorial correspondente: grandes e brutais migrações, muito mais migrações de consumo que de trabalho, esvaziamento demográfico em inúmeras regiões, concentração da população em crescimento em algumas poucas áreas, sobretudo urbanas, com a formação de grandes metrópoles em todas as regiões e a constituição de uma verdadeira megalópole do tipo brasileiro no Sudeste.

Além do que, para os seus moradores menos móveis, a cidade é impalpável. Ela, porém, impõe-se como um amontoado de signos aparentemente desencontrados, agindo, no entanto, em concerto, para limitar mais do que para facilitar a minha ação, tornando-me impotente diante da multiplicidade das coisas que me cercam e de que posso dispor**.

Notas:
*. “Não existe um livro chamado ‘O espírito das futuras leis brasileiras’, nem Montesquieu para escrever este livro. […] O texto não existe porque o espírito que buscamos necessita de uma conjuntura de ideias e instituições inéditas. 
E esse espírito tem de enquadrar um sistema de desenvolvimento acelerado com a redistribuição de renda e um Estado com sérias capacidades para manter o processo de desenvolvimento e redistribuição da renda ao mesmo tempo. Esse espírito exige instituições que possam manter a liberdade individual e a participação social e política” (Truber, 1981, pp. 151-152). 
**. A concentração urbana e, com ela, a diferenciação crescem mais depressa para a produtividade. É o fundamento da alienação urbana. Um equilíbrio neurótico termina, no entanto, por se estabelecer em benefício da ordem mais coerente da produção […]” (Baudrillard, 1970, p. 87). 

Uma sociedade multitudinária

Criava-se, assim, uma sociedade multitudinária – seria, já, uma sociedade de massas ou um seu arremedo? – sem o concomitante de um real consumo de massa, pois o poder aquisitivo faltava cruelmente a uma grande parcela dos novos urbanos. O consumo de massa é multiforme e abrangente. O que se deu no Brasil foi um consumo exclusivo que, mesmo para os estratos sociais beneficiados, mais se referiu a alguns bens materiais que ao conjunto de bens, a começar pelos bens imateriais, que facilitam o acesso a uma vida não apenas confortável, como, também mais digna*.

O consumo de massa esboçado valeu-se da mídia, em crescimento vertical, para impor gostos e preços. Esse trabalho de sedução foi facilitado pela própria atração que as novas mídias impuseram sobre o público**. Criadores da moda, difusores do crédito, o papel dos meios de  difusão deve ser realçado como o do colaborador privilegiado das artimanhas da produção de massas estilo brasileiro, uma produção de massas contente de si mesma e necessitada apenas de um mercado voluntariamente restringido. Isso garante o não-esgotamento da revolução das esperanças – isto é, das grandes esperanças de consumir -, e ajuda a colocar, como meta, não propriamente o indivíduo tornado cidadão, mas o indivíduo tornado consumidor.

Os efeitos daninhos dessa metamorfose ainda se farão sentir por muito tempo, e agora funcionam mais como um fator limitativo na elaboração de um projeto nacional mais consequente, já que os projetos projetos pessoais afloram e se exprimem com um vasto componente de alienação. É assim para a maioria da população, desprovida de meios para uma análise crítica de sua própria condição.

Também é ainda mais grave para os milhões de indivíduos que nasceram depois que tal processo se  iniciou ou que a ele se incorporaram sem poder distinguir aspirações pessoais legítimas e imposições do sistema econômico e político. Trata-se aqui daquela confusão entre liberdade e dominação, de que fala Marcuse quando se refere às condições de existência no mundo de hoje***.

A urbanização fundada no consumo é, também, a matriz de um combate entre a cultura popular que desertava as classes médias para ir se abrigar nos bairros pobres, cultura popular hoje defendida pelos pobres, cuja pobreza impede, afinal, sua completa imersão nessas novas formas de vida, fundadas pelo mesmo consumo que levou os pobres à cidade ou nesta fez pobres os que ainda não o eram.

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Imagem: Conexão Japão. 

Na cidade, sobretudo na grande, os cimentos se dissolvem e mínguam as solidariedades ancestrais. Ali onde o dinheiro se torna a medida de tudo, a economização da vida social impõe a competitividade e um selvagismo crescentes. As causas dos males aparecem como se fossem a sua solução, círculo vicioso que escancara as portas das favelas para a cultura de massas, com o seu cortejo de despersonalização, e a substituição dos projetos pessoais saídos da cultura, isto é, de dentro do indivíduo, por outros projetos elaborados de fora deste mesmo indivíduo, projetos decididos a conquistar todo mundo pela força da propaganda*¹. Assim, a cultura popular, cultura “selvagem” e irracional, é substituída, lenta ou rapidamente, pela cultura de massas; o espaço “selvagem” cede lugar a um espaço que enquadra e limita as expressões populares, e o que deveria surgir como sociedade de massas apenas se dá como sociedade alienada*².

Em lugar do cidadão surge o consumidor insatisfeito e, por isso, votado a permanecer consumidor.Sua dependência em relação aos novos objetos limita sua vocação para obter uma individualidade e reduz a possibilidade dos encontros interpessoais diretos e enriquecedores, porque simbólicos em sua própria origem. A comunicação entre as pessoas é frequentemente intermediada por coisas. Frequentemente os movimentos de massa também se esgotam nas coisas, tendo uma lógica mais instrumental que existencial*³. As mobilizações são locais ou setoriais. A socialização capitalista, originária de uma divisão de trabalho que a monetarização acentua, impede movimentos globais e um pensamento global. A reivindicação de uns não raro representa um agravo para o outro. A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

Uma visão mais abrangente das coisas e dos fenômenos acaba por ser negada aos cidadãos comuns, em vista da concentração da mídia, da sobrecarga de informações irrelevantes**¹ e da tendência a apenas ampliar certos aspectos da realidade, cuja escolha para a exibição pública é, com frequência, ligada ao mundo da política e dos interesses. Lindbeck (1975, p. 35) já havia chamado a atenção para a dramatização que é feita sob “problemas específicos e concretos” que atraem e fixam a atenção sobre aspectos geralmente menores dos eventos. Quem olha a televisão com algum senso crítico já deve ter-se apercebido dessa forma de manipulação dos acontecimento.

Notas: 
*. Em uma de suas colaborações semanais à página 2 da Folha de S. Paulo, intitulada “Celso Furtado Revisitado”, Jarbas Passarinho comenta a impressão que obteve, há vinte anos, do livro “A Pré-Revolução Brasileira”, do renomado economista brasileiro. Celso Furtado já se referia ao dilema entre a liberdade e o desenvolvimento rápido, considerado como um falso dilema pelo comentarista atual. Na verdade, a contradição se deu entre um crescimento material acelerado pouco preocupado com a essência e a realização cultural da sociedade, oferecendo como resultado as cidadanias de segunda e terceira classe que caracterizavam a esmagadora maioria dos brasileiros. Cidadãos de primeira classe são os que se beneficiam desse crescimento econômico distorcido. 
**. “A deformação que se faz a respeito dos meios de comunicação eletrônicos decorre, portanto, da evidente deformação do significado do que eles efetivamente transmitem e de uma incompreensão a respeito da relação entre a aparência e a essência dos fenômenos no processo de conhecimento. Se a televisão e o rádio são ainda os únicos instrumentos que atingem as dezenas de milhões de brasileiros que mal manejam um lápis, que mal soletram o ABC, a papagaiada em torno do fim das barreiras culturais entre povos, a falência da escrita – e do jornalismo escrito – são criações de intelectuais que leram excessivamente e tiveram contato quase nenhum com as lutas políticas, econômicas, culturais e ideológicas práticas do povo brasileiro” (“Projeto de um Diário”, Retrato do Brasil, São Paulo, Política, 1984, p. 7). 
***. “Psicologicamente, e é só isso o que aqui nos preocupa, a diferença entre dominação e liberdade está se tornando menor. O indivíduo reproduz, em seu nível mais profundo, na sua estrutura de instintos, os valores e os padrões de comportamentos que servem menos para manter a dominação, enquanto a dominação se torna cada vez menos autônoma, menos ‘pessoal’, mais objetiva e mais universal. O que hoje domina é o aparelho econômico, político e cultural, que se tornou uma unidade indivisível construída pelo trabalho social” (Marcuse, 1970, p. 3). 
*¹. A propósito da forma como a imprensa escrita, falada e televisionada influi sobre a mente dos indivíduos, pode ser útil a leitura de um livro didaticamente redigido: “Mídia: O Segundo Deus”, de Tony Schwartz (1986). Um enfoque filosófico do tema é oferecido por Hans Magnus Enzensberger em “The Consciousness Industry…” (1974). 
*². “A mídia tende a focalizar mais as notícias ruins do que boas, a mostrar as aberrações em lugar do que é normal. É possível que, fazendo assim, esteja correspondendo ao gosto público. Mas o resultado […]” (Rybczynski, 1985, p. 27). 
*³. “O poder social é, hoje, mais que nunca, mediado pelo poder das coisas. Quanto mais intensa a implicação do homem com as coisas, e mais as coisas o dominam e mais lhe faltam aqueles traços individuais genuínos e mais sua mente será transformada em um autômato da razão formalizada” (Horkheimer, 1974, pp. 129-130). 
**¹. “Esse estado de superinformação perpétua e de subinformação crônica caracteriza nossas sociedades contemporâneas. 
O imediato torna, de fato, a decifração de um acontecimento ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil. Mais fácil porque choca de imediato, mais difícil porque se manifesta totalmente de imediato. Num sistema de informações mais tradicional, o acontecimento assinala por seu próprio conteúdo sua área de difusão. Sua rede de influências era, cada vez mais, definida por aqueles aos quais tocava. Seu traço  era mais linear […] estando doravante cortados os intermediários, opera-se uma telescopagem, e na incandescência das significações ficamos cegos” (Nora, 1976, p. 189). 

Imagens: Lucas Rocha

Referência: 

SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo, Edusp: 2007.

Da cidade industrial à cidade dos consumidores: reflexões teóricas para debater

Por Carles Carreras¹

 

Com mais de trinta anos de docência universitária, da qual a maior parte foi dedicada à geografia urbana, a interpretação teórica da cidade continua apresentando alguns problemas, especialmente quando se parte unicamente das contribuições produzidas no campo da disciplina geográfica. Das aplicações excessivamente baseadas em manuais de contribuições relativamente tardias da Geografia francesa*, especialmente de Raoul Blanchard (1922)**, Georges Chabot (1948) e Jacqueline Beaujeu-Garnier (1980), divulgadas especialmente por Pierre George (1961) e que, em certa forma, seriam aprofundadas por Milton Santos em sua primeira etapa e para as cidades do subdesenvolvimento (1973), passou-se às influências da filosofia de Henri Lefebvre (1986) e à da sua crítica sociológica, a cargo do primeiro livro de Manuel Castells (1972), cuja evolução teórica posterior foi tão fecunda***. Paralelamente há que se destacar a relativa permanência das explicações da escola clássica de Chicago, apesar das críticas teóricas básicas realizadas desde enfoques tanto marxistas como neopositivistas; o vigor do enfoque e a clareza do modelo se mantiveram e inclusive ampliaram-se, com a aparição de novos movimentos sociais na cidade, desde os movimentos de vizinhanças dos anos 1970 (Castells, 1973) até os chamados gentrificadores da década posterior (Smith e Williams, 1986).

Junto a essa trajetória docente, a experiência urbana e as investigações empíricas conseguiram complicar ainda mais qualquer aproximação extremamente esquemática da interpretação e do conhecimento da cidade. Do infrutuoso acúmulo de rupturas teóricas passou-se a uma certa recuperação das tradições explicativas diversas, que poderia chamar-se de uma continuidade flexível (Parker, 2004), com especial ênfase no uso das técnicas qualitativas para a construção e interpretação da informação. Junto a isto, que pode ser rotulado de ecletismo, há que destacar o reconhecimento do aporte teórico tão notável de David Harvey (2003a) e, embora menor, não menos estimulante o de Edward Soja (2000), únicos geógrafos citados e lidos amplamente fora da própria comunidade científica.

Dada a complexidade do fenômeno urbano e frente à sistematização dos diversos problemas que se questionam nas tentativas de definição e explicação da cidade, esses se agruparam em quatro campos diferentes que intervêm significativamente na explicação da dinâmica das cidades contemporâneas. Em cada um destes campos se questionam problemas de natureza diferente, para alguns dos quais se encontram respostas teóricas, enquanto para outros foram lançadas unicamente hipóteses. Como opção teórica pessoal, devemos sinalizar que estes campos estão sempre relacionados com o fator mudança, o que não deixa de significar a aplicação de certa comparação entre um antes e um depois*¹.

Neste capítulo*² apresentam-se a seguir esses quatros campos, como o enunciado dos principais problemas e suas possíveis soluções, quando existem. A ordem em que estes campos são apresentados é aleatória e, em nenhum caso, pretende ser casual. Seguidamente se formulam umas primeiras conclusões teóricas gerais, talvez com mais problemas – uns velhos e outros novos – que soluções.

Notas:
*. A primeira bibliografia anglo-saxã também não sobrepassava este nível manualístico, apesar de incorporar outros enfoques (Taylor, 1949 ou Dickinson, 1952).
**. É interessante notar que o método de Blanchard foi rapidamente traduzido ao catalão no boletim do centro excursionista da Catalunha e que alcançou  uma grande difusão como guia de estudos locais de aficionados. 
***. Deste período são as primeiras publicações de investigações urbanas (Carreras, 1974 e 1980).
*¹. Deseja-se destacar aqui esta vertente comparativa dentro de um projeto que, de alguma maneira, compara duas cidades como Barcelona e São Paulo, mesmo que isso não signifique a adesão a nenhum “método” comparativo como tal.
*². Uma primeira versão deste capítulo foi apresentada no seminário organizado para este efeito no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo em dezembro de 2002. Esta disposição de apresentação de seminário entre colegas explica o estilo sintético do texto que não detalha o que pode ser encontrado na bibliografia citada e dá-se por sabido.

As mudanças no sistema produtivo

Sem pretender realizar uma descrição com rigor histórico da análise das mudanças no sistema produtivo, somente se pretende aqui separar algumas variáveis fundamentais para a explicação da dinâmica econômica contemporânea. Assim, a deslocalização industrial, por um lado, a expansão e o crescimento das mal chamadas empresas multinacionais, por outro, introduzem claramente a lógica da globalização*. O mundo, e inclusive hoje quase o espaço cósmico e os planetas acessíveis, constituem o único âmbito normal para a tomada de decisões de qualquer um dos agentes econômicos, independentemente de sua dimensão e importância, mesmo que regidos especialmente pela hegemonia do capital financeiro. O auge das bolsas, de algumas bolsas ao menos**, e a possibilidade do investimento constante, tanto no presente como no futuro, e em qualquer lugar e a partir  de qualquer lugar, veio para romper de alguma forma as lógicas espaço-temporais do capitalismo industrial. David Harvey explicou essas mudanças definindo uma nova fase na evolução do capitalismo e a chama de acumulação por espoliação diante da fase de reprodução expandida anterior, a partir de suas interessantes tentativas de explicação da guerra contra o Iraque (Harvey, 2003b).

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As bolsas de valores como representação da atual fase do capitalismo denominada por Harvey como “acumulação por espoliação”. Imagem: Na Ponta do Lápis. 

Produziu-se também com isso uma progressiva fragmentação dos processos produtivos e do trabalho, em geral, desenvolvendo-se enormemente a chamada subcontratação, que dá novo sentido à terceirização (como intervenção de terceiros, que podem ser inumeráveis e criam redes e empresas de novo tipo, muito diversificadas). Ao mesmo tempo foi se produzindo uma tendência à personalização da demanda que condiciona progressivamente a produção, frente a tradicional produção em massa das cadeias de montagem, o que pode supor uma mudança de escala e explica que esse processo tenha sido denominado pós-fordista, enfatizando somente os aspectos técnicos destas mudanças. De qualquer maneira, deve-se ressaltar que se formularam outras explicações, como a chamada teoria da regulação (Boyer, 1987) ou da desorganização do capitalismo (Lash e Urry, 1987), ambas centradas em destacar a flexibilização que vem se produzindo em todos os âmbitos. Por outro lado, finalmente, se enfatizou a formação de uma sociedade organizada em redes e baseada essencialmente na informação, que inclui uma explicação mais ampla e complexa da dinâmica econômica do mundo contemporâneo (Castells, 1996).

Dentro desse contexto geral, que é necessário continuar estudando e debatendo, já se trabalhou pessoalmente na perspectiva de privilegiar o papel do consumo como novo reorganizador de todo o sistema produtivo, das dinâmicas sociais e da produção (e consumo) da cidade e do território. Novamente, neste aspecto deve-se questionar uma certa orfandade teórica, ao menos dentro da disciplina da Geografia, em geral, com a obsolescência relativa das obras que foram fundamentais na década de 1970, que não levaram a contemplar esta perspectiva do consumo mais do que como demanda necessária aos interesses da produção ou do consumo coletivo imprescindível na chamada reprodução da força de trabalho. Há que sinalizar, logicamente, exceções importantes especialmente no ramo da Antropologia cultural e nos estudos culturais, em geral, com autores como Néstor García Canclini (1995), para a América Latina, ou Jameson (1984), Appaduraj (1986), McCraken (1990) ou Miller (1995), para o mundo anglo-saxão***.

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Foto: Raoni Barbosa.

 O consumo de bens, produtos e de serviços, de tempos e de espaços deve-se configurar como a variável explicativa fundamental da sociedade contemporânea, com o desenho de uma nova cultura que se debate entre o local e o global, e com impactos decisivos no social e no econômico, administrada apenas por um sistema político mais rígido do que poderia se esperar *¹. Esta nova configuração deve levar a uma reclassificação das atividades econômicas e a uma reflexão sobre o papel predominante da distribuição e da gestão. Neste sentido, e por causa da maior facilidade na obtenção dos dados econômicos, grande parte da investigação pessoal se centralizou no estudo das estruturas comerciais urbanas, mesmo que com um sentido amplo de comércio, o que inclui grande parte dos serviços que têm contato direto com o público (Carreras et al., 1990, 2001 e 2003). No trabalho de campo, nas entrevistas e nas pesquisas realizadas durante as investigações centralizadas no caso de Barcelona essencialmente (com análise comparativa com Madri, Lisboa e Toulouse e, ainda que menos, com São Paulo) foram alcançados alguns resultados sobre o consumo em si mesmo, embora sem alcançar ainda uma explicação demasiado completa (Carreras, 1999).

Notas:
*. Defende-se aqui o termo anglo-saxão de globalização, diante ao de mundialização dos franceses, dado ao significado absolutamente diferente e estrutural da nova organização mundial em uma sociedade da informação (Castells, 1996).
**. É curioso indicar como a chamada cidade global de Saskia Sassen coincide muito automaticamente talvez com a sede das três principais bolsas do mundo que constituem a referência para todas as demais: Nova York, Londres e Tóquio.
***. Cabe destacar, já neste sentido, a tradução ao português de parte da obra do antropólogo britânico Don Slater (Slater, 2001).
*¹. Faz-se referência aqui à pervivência do papel do Estado além do que era dado a se pensar. 

As mudanças na sociedade

No nível social há que se registrar também uma mudança fundamental que se mostra especialmente nas dinâmicas de fragmentação da família, como unidade tradicional de agrupação entre a sociedade e o indivíduo, culminando assim na realidade, nas mudanças iniciadas no nível teórico durante o século das Luzes. A reprodução do tamanho da família, assim, levou à multiplicação das famílias unipessoais, individualizando as unidades de consumo urbano. O próprio perfil do indivíduo também foi analisado em sua complexidade e dinâmica, levando à definição de uma sociedade de indivíduos que podem desenvolver papeis diferentes em momentos e lugares distintos (Elias, 1987).

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Parada do Orgulho LGBT de São Paulo 2015 – manifetação por direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Foto: Amauri Nehn/ Estadão Conteúdo/ UOL Notícias

Novos conflitos sociais tornam aparentes essas mudanças, especialmente no que se refere a alguns temas. Uns ligados ao gênero, com o aumento da violência doméstica, mantendo as lutas pela igualdade entre homens e mulheres e pelos direitos de gays e lésbicas. Outros relacionados com a crescente marginalização dos jovens, a formação das chamadas tribos urbanas, e a dos velhos e sua nova exploração. Outros, finalmente, relacionados com as novas migrações, cada vez com maiores itinerários e uma pluralidade cultural maior, favorecidas pela relativa flexibilização e mudanças das fronteiras políticas tradicionais.

De qualquer maneira, há que se sinalizar que os novos grupos sociais surgidos em torno dessas mudanças (que alguns acham que não são tão novas) se superpõem, sem eliminar nem desmentir, a divisão geral da sociedade urbana em classes, embora já não seja com uma base exclusivamente econômica. Por causa da importância que as mudanças culturais diversas nas diferentes culturas tem, a mestiçagem, a hibridação e a multiculturalidade aparecem como soluções básicas, mesmo que de difícil aplicação, para esse novo conflitismo social.

Do ponto de vista da investigação, a Geografia humana tende a desenvolver estudos sociais muitas vezes como análise demográfica, somente. Isso supõe, por um lado, o predomínio das aproximações puramente quantificadoras, ficando o social como uma explicação fragmentada e pontual. Por outro, isso supõe também forte dependência a respeito das fontes estatísticas oficiais em busca da exaustão dos universos estudados, utilizando muito escassamente as aproximações qualitativas, as sondagens e as tendências. Assim, entroncam-se como o velho debate sobre a variável independente, que logicamente não existe, e que deveria levar a enfocar a Geografia social, em grande parte, como uma Geografia cultural.

As mudanças no tempo

Neste caso, logicamente, não se trata tanto de que o tempo tenha mudado por si mesmo, mas que mudam sua concepção e sua experiência. A vivência do tempo, dos tempos na cidade, também está mudando de forma significativa, como consequência da flexibilização dos horários de trabalho e do aumento da rapidez das comunicações de todos os tipos. Milton Santos (1996) destacou já nos anos 1990 a importância da diferença dos ritmos do tempo vivido por diferentes pessoas e grupos sociais, definindo um tempo rápido e um tempo lento como extremos de diferentes possibilidades de vivenciar os tempos na cidade. Essas mudanças de vivência dos tempos têm uma influência especialmente marcada na progressiva desregulamentação do calendário e dos horários laborais. A conformação de uma sociedade de consumidores está condicionando basicamente essas mudanças com a alteração e alongamentos das temporadas turísticas e dos horários comerciais, por exemplo, elementos que geram grande confrontação e debate entre os diversos agentes sociais. O avanço progressivo da aposentadoria e a redução da jornada de trabalho em alguns países, assim como o aumento da greve em quase todos, levaria também ao desenvolvimento da chamada sociedade do ócio, mais que do trabalho. Mas, por outro lado, há que se frisar também que, ao mesmo tempo, aumentaram as empresas de todos os tipos que prestam seus serviços 24 horas.

Da mesma forma registraram-se mudanças importantes na idade em que as pessoas decidem fazer ou podem fazer determinadas coisas. Depois aumento constante, mesmo que desigual, da esperança de vida, da progressiva diminuição da maioridade, atrasa-se ou avança-se, de acordo com as circunstâncias, a entrada e a saída no mercado de trabalho, se atrasa a idade do matrimônio ou da formação  de um núcleo familiar e especialmente a idade da concepção do primeiro filho. Este último fato, que tem claras consequências na diminuição das taxas de fecundidade, contrasta com os grandes avanços de técnicas de fertilização humana e dos hábitos de adoção de crianças em uma escala internacional, que permitiria aumentar enormemente essas taxas.

Como uma das consequências sociais mais importantes que geram essas mudanças nos tempos vividos, cabe destacar que se produziram também uma flexibilização e novas dinâmicas na realização dos papeis sociais tradicionais dos indivíduos. Neste sentido aparece na sociedade dos consumidores cada vez mais um certo esfumaçamento das fronteiras tradicionais entre o feminino e o masculino, ou entre a juventude e a velhice, entre ricos e pobres, o que permite gerar novas possibilidades de estudo e novos conflitos sociais.

As mudanças no espaço

Como é lógico, todo esse conjunto de mudanças, que se reproduzem em ritmos e momentos diferentes, provocam uma série de novas mudanças e novas dinâmicas no território. No campo da planificação territorial, especialmente, urbana, com a crise do “zoning” que vinha consolidar a ordem “fordista”, que predicava uma coisa em cada lugar, um lugar para cada coisa, e propunha a divisão das 24 horas em três blocos separados; a inclusão da dinâmica das mudanças econômicas, sociais e temporais e a consequência  de tal flexibilização deixaram sem aplicação o zoneamento unifuncional dos distintos fragmentos do mosaico urbano. A partir daqui, as administrações locais tiveram de entrar em uma série contínua de mudanças nas qualificações do planejamento já aprovado, ao mesmo tempo que os novos planejamentos se fazem mais formais e morfológicos e, sobretudo, pontuais, ou se convertem em estratégicos de corte empresarial.

Uma das manifestações importantes deste relativo relaxamento do planejamento (Cervellatti, 1984) foi a reconsideração da densificação urbana, que passou a ser combatida a ser progressivamente valorizada, com argumentos tanto meio ambientais como culturais*. Outras manifestações se referem à reabilitação do patrimônio urbano, para a conservação da memória cidadã e, também, como geração de uma imagem de marca para a valorização turística da cidade no mercado internacional; isso se manifestou em uma grande multiplicação de políticas e renovação dos bairros centrais, que coincide com a difusão da chamada gentrificação (Smith e Williams, 1986). A eclosão do movimento cultural que se autodenominou pós-moderno (Habermas, 1988) deu base teórica a muitas dessas políticas de reabilitação, introduzindo modelos de novo ecletismo artístico e temporal e criando a possibilidade de escolherem vários cenários diferentes por parte dos cidadãos e dos administradores da cidade.

Berrini
São Paulo global – Ponte Estaiada e a região da Avenida Luis Carlos Berrini atrás. A imagem de uma metrópole globalizada, moderna e competitiva diante do mercado internacional.  

A crescente importância do consumo do espaço urbano colocou no primeiro plano das políticas de muitas cidades um interesse especial pela paisagem urbana em relação com o desenvolvimento da chamada sociedade do espetáculo (Debord, 1992), e da cultura da imagem. O papel dos arquitetos** e de outros técnicos foi assim magnificado e a contratação de suas obras em uma escala internacional concretizou boa parte da homogeneização de muitos espaços urbanos que se considera vinculada com exagero ao desenvolvimento  da globalização. As cidades investem crescentemente na fixação de uma imagem competitiva no mercado internacional com o fim de atrair todo o tipo de investimentos produtivos, imobiliários, turísticos ou de qualquer outro tipo.

Estas mudanças, junto ao crescimento contínuo das cidades em uma escala mundial e a multiplicação das metrópoles, apresentam cada vez mais o problema da compreensão da cidade como uma totalidade e suas dificuldades. Contrapõe-se assim a concepção holística da cidade por parte dos analistas, científicos, técnicos e políticos urbanos à fragmentação vivida pela maioria dos cidadãos em seus itinerários cotidianos. Essa contraposição acarreta como uma de suas consequências perversas um distanciamento e uma incompreensão  progressiva dos cidadãos a respeito da administração urbana que deve ter algumas consequências na crise geral do sistema produtivo democrático na época contemporânea.

Notas:
*. Isto, ao menos, se produz em algumas cidades europeias, especialmente nos estudos metropolitanos da cidade de Barcelona.
**. O papel predominante dos arquitetos foi denunciado em Barcelona nos últimos anos (Moix, 19), cuja influência se estendeu a outras cidades em escala internacional com a criação do chamado modelo Barcelona, que necessita de uma revisão crítica em profundidade (Carreras, 1995).

 Mudanças e continuidade na cidade

Como conclusão devem-se frisar alguns pontos gerais já que é sabido que a dialética constante entre a mudança e a continuidade em Geografia resulta com frequência em uma simples consequência metodológica da escolha da escala do estudo. Os estudos de grande escala, tanto territorial como temporal, acentuam a visibilidade das mudanças e da diversidade, além de dificultarem a classificação e explicação dos fatos estudados. Contrariamente, os estudos realizados em pequena escala levam a destacar as continuidades e as permanências, as regularidades e a homogeneidade. Por isso, é imprescindível tentar realizar qualquer estudo aplicando a análise multiescalar clássica na Geografia (Lacoste, 1977) que busque explicar a complexidade.

Igualmente, há que se ter sempre em conta que as mudanças, por mais importantes que sejam, não acabam automaticamente com o anterior, nem no mesmo momento, e que quase nunca totalmente. Cada território apresenta umas inércias e umas resistências particulares à introdução das inovações e mudanças, o que permite certa revalorização das aproximações clássicas dos processos de difusão do geógrafo sueco Törsten Häggerstrand, incluindo sua posterior evolução da quantificação matemática à quantificação subjetiva. A particular articulação de resistências e inovações pode construir a essência do local e explicaria suas conexões com o global. Na cidade este fato é especialmente importante, o que levou sua consideração como palimpsesto, efeito ampliado pelas apropriações e representações diferentes que são feitas por cada cidadão. Do mesmo modo, as mudanças, todas elas, de qualquer tipo, não podem ser isoladas dos momentos em que se produzem, com o fim de documentar e contextualizar os processos, suas causas e seus ritmos. Este fato obriga a manter as tradicionais relações entre a Geografia e a História, mesmo que baseada em novos parâmetros de colaboração. Recorrer ao rigor histórico não deve ser confundido com ser historicista.

Esse mesmo fato de não considerar a inovação como anuladora do anterior deve ser aplicado especialmente ao corpo da teoria; pensar que uma nova explicação anula ou supera as anteriores não deixa de significar uma concepção “desenvolvista” de base biológica da evolução do pensamento, muito arraigada nos anos 1960 que deveria ser totalmente descartada. Cada teoria, cada hipótese mantém algum valor explicativo, mais ou menos importante e complexo, aplicável em algum lugar e talvez não em outros, que deve ser por isso contextualizado e analisado para sua posterior incorporação à explicação geral e complexa de fenômenos sociais, como a cidade e o urbano. 

Dentro deste contexto geral cabe se perguntar, seguidamente, o que permanece da explicação da cidade industrial, que analisou a Geografia clássica em seus diversos enfoques. Parece evidente que ainda permanecem os principais mecanismos do mercado do solo e a combinação de estratégias dos diversos agentes da produção do espaço urbano, assim como as bases essenciais da divisão da sociedade em classes. De qualquer maneira, essa evidência não pode anular a visibilidade das mudanças importantes que se produzem na reprodução dos mecanismos de poder que têm claras consequências sobre os anteriores.

Neste sentido, e em primeiro lugar, deve-se enfatizar os efeitos da internacionalização do mercado e do consumo; inclusive do mercado do solo urbano que tradicionalmente se havia mantido no âmbito local ou regional ou, como máximo, nacional, no caso das capitais e das grandes cidades, e hoje se ampliou a um mercado global. As contradições entre o local e o global aparecem assim como um dos temas de estudos mais relevantes  nas grande metrópoles e na maior parte das cidades e territórios, levando à necessidade de investigação das estratégias das companhias imobiliárias internacionais e da concorrência entre cidades, com temas-chave como as bases teóricas  do chamado modelo Barcelona, que deve ser discutido com rigor em sua criação e em suas aplicações tão diversas.

BarcelonaDesignTour
Centro moderno e globalizado de Barcelona, Espanha. 

Por outro lado, em segundo lugar e no nível teórico cabe se perguntar sobre a vigência atual do próprio conceito de cidade e dos outros conceitos que aparecem ligados a este como: metrópole ou bairro, centro ou periferia. Não está claro que a mesma palavra deva servir para denominar realidades que podem chegar a ser muito diferentes, tanto a escala histórica (de Jericó a Brasília, como apontava Paul Bayroch em  1985) como a escala mundial contemporânea (de Nova York ao Cairo ou Xangai). Edward Soja desenvolveu as intuitivas hipóteses de Jane Jacobs dos anos 1960, aplicando o conceito de contiguidade criativa para explicar a essência e a permanência do urbano através das civilizações, do tempo e do espaço (Soja, 2000). Sem necessidade talvez de novas palavras, a cidade continua sendo um conceito geográfico por excelência, já que permite incluir os aspectos físicos e morfológicos, assim como os sociais, econômicos, políticos e culturais que constituem a complexidade dinâmica da sociedade urbana.

Os diferentes tempos com que se vive a cidade estabelecem a questão de quem pode contemplar hoje a totalidade de cada cidade, especialmente nas grande metrópoles. A vida cotidiana da maioria dos cidadãos transcorre em itinerários relativamente limitados e repetidos, o que impede a compreensão da cidade com um todo; apenas uma minoria de cidadãos tem um âmbito maior, dentro e fora da cidade, e consegue uma visão mais totalizante; assim como os visitantes e turistas cujo desconhecimento facilita a confecção de uma ideia geral e generalizante. Entre essas visões totalizadora e generalizadoras destaca-se a dos políticos, administradores e técnicos e suas consequências sobre a crise atual dos princípios do sistema democrático. Mas, deve-se destacar também, o papel dos estudiosos, especialmente neste caso, dos geógrafos urbanos que elaboramos a análise e a síntese que, com maior ou menor êxito, se difundem sobre nossas cidades. Isso se deve levar ao aprofundamento da reflexão sobre o papel do próprio investigador na simulação e na dissimulação da realidade estudada e acabar com a simplificação de usar a cidade como um sujeito coletivo.

Finalmente, a importância crescente de variáveis ligadas à cultura, em seus sentidos mais amplos, deve ajudar a reforçar os estudos das culturas urbanas. As mudanças culturais produzidas pela globalização da sociedade, da informação e dos consumidores constituem um dos elementos mais significativos da vida cotidiana e da organização da vida social urbana. Ainda assim, deve-se reavaliar os processos de formação das identidades em diferentes grupos sociais em cada cidade e suas consequências sobre a convivência. Tudo isso aponta, sobretudo a partir dos estudos do antropólogo argentino Néstor García Canclini, ao fenômeno da hibridação e da multiculturalidade.

¹. Carles Carreras – Professor da Universidade de Barcelona

Organização das imagens: Lucas Rocha

Referência:

CARLOS, Ana Fani; CARRERAS, Carles (Orgs.). Urbanização e mundialização: estudos sobre a metrópole. São Paulo: Editora Contexto,  2005.