Da cidade industrial à cidade dos consumidores: reflexões teóricas para debater

Por Carles Carreras¹

 

Com mais de trinta anos de docência universitária, da qual a maior parte foi dedicada à geografia urbana, a interpretação teórica da cidade continua apresentando alguns problemas, especialmente quando se parte unicamente das contribuições produzidas no campo da disciplina geográfica. Das aplicações excessivamente baseadas em manuais de contribuições relativamente tardias da Geografia francesa*, especialmente de Raoul Blanchard (1922)**, Georges Chabot (1948) e Jacqueline Beaujeu-Garnier (1980), divulgadas especialmente por Pierre George (1961) e que, em certa forma, seriam aprofundadas por Milton Santos em sua primeira etapa e para as cidades do subdesenvolvimento (1973), passou-se às influências da filosofia de Henri Lefebvre (1986) e à da sua crítica sociológica, a cargo do primeiro livro de Manuel Castells (1972), cuja evolução teórica posterior foi tão fecunda***. Paralelamente há que se destacar a relativa permanência das explicações da escola clássica de Chicago, apesar das críticas teóricas básicas realizadas desde enfoques tanto marxistas como neopositivistas; o vigor do enfoque e a clareza do modelo se mantiveram e inclusive ampliaram-se, com a aparição de novos movimentos sociais na cidade, desde os movimentos de vizinhanças dos anos 1970 (Castells, 1973) até os chamados gentrificadores da década posterior (Smith e Williams, 1986).

Junto a essa trajetória docente, a experiência urbana e as investigações empíricas conseguiram complicar ainda mais qualquer aproximação extremamente esquemática da interpretação e do conhecimento da cidade. Do infrutuoso acúmulo de rupturas teóricas passou-se a uma certa recuperação das tradições explicativas diversas, que poderia chamar-se de uma continuidade flexível (Parker, 2004), com especial ênfase no uso das técnicas qualitativas para a construção e interpretação da informação. Junto a isto, que pode ser rotulado de ecletismo, há que destacar o reconhecimento do aporte teórico tão notável de David Harvey (2003a) e, embora menor, não menos estimulante o de Edward Soja (2000), únicos geógrafos citados e lidos amplamente fora da própria comunidade científica.

Dada a complexidade do fenômeno urbano e frente à sistematização dos diversos problemas que se questionam nas tentativas de definição e explicação da cidade, esses se agruparam em quatro campos diferentes que intervêm significativamente na explicação da dinâmica das cidades contemporâneas. Em cada um destes campos se questionam problemas de natureza diferente, para alguns dos quais se encontram respostas teóricas, enquanto para outros foram lançadas unicamente hipóteses. Como opção teórica pessoal, devemos sinalizar que estes campos estão sempre relacionados com o fator mudança, o que não deixa de significar a aplicação de certa comparação entre um antes e um depois*¹.

Neste capítulo*² apresentam-se a seguir esses quatros campos, como o enunciado dos principais problemas e suas possíveis soluções, quando existem. A ordem em que estes campos são apresentados é aleatória e, em nenhum caso, pretende ser casual. Seguidamente se formulam umas primeiras conclusões teóricas gerais, talvez com mais problemas – uns velhos e outros novos – que soluções.

Notas:
*. A primeira bibliografia anglo-saxã também não sobrepassava este nível manualístico, apesar de incorporar outros enfoques (Taylor, 1949 ou Dickinson, 1952).
**. É interessante notar que o método de Blanchard foi rapidamente traduzido ao catalão no boletim do centro excursionista da Catalunha e que alcançou  uma grande difusão como guia de estudos locais de aficionados. 
***. Deste período são as primeiras publicações de investigações urbanas (Carreras, 1974 e 1980).
*¹. Deseja-se destacar aqui esta vertente comparativa dentro de um projeto que, de alguma maneira, compara duas cidades como Barcelona e São Paulo, mesmo que isso não signifique a adesão a nenhum “método” comparativo como tal.
*². Uma primeira versão deste capítulo foi apresentada no seminário organizado para este efeito no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo em dezembro de 2002. Esta disposição de apresentação de seminário entre colegas explica o estilo sintético do texto que não detalha o que pode ser encontrado na bibliografia citada e dá-se por sabido.

As mudanças no sistema produtivo

Sem pretender realizar uma descrição com rigor histórico da análise das mudanças no sistema produtivo, somente se pretende aqui separar algumas variáveis fundamentais para a explicação da dinâmica econômica contemporânea. Assim, a deslocalização industrial, por um lado, a expansão e o crescimento das mal chamadas empresas multinacionais, por outro, introduzem claramente a lógica da globalização*. O mundo, e inclusive hoje quase o espaço cósmico e os planetas acessíveis, constituem o único âmbito normal para a tomada de decisões de qualquer um dos agentes econômicos, independentemente de sua dimensão e importância, mesmo que regidos especialmente pela hegemonia do capital financeiro. O auge das bolsas, de algumas bolsas ao menos**, e a possibilidade do investimento constante, tanto no presente como no futuro, e em qualquer lugar e a partir  de qualquer lugar, veio para romper de alguma forma as lógicas espaço-temporais do capitalismo industrial. David Harvey explicou essas mudanças definindo uma nova fase na evolução do capitalismo e a chama de acumulação por espoliação diante da fase de reprodução expandida anterior, a partir de suas interessantes tentativas de explicação da guerra contra o Iraque (Harvey, 2003b).

bolsa de valroes
As bolsas de valores como representação da atual fase do capitalismo denominada por Harvey como “acumulação por espoliação”. Imagem: Na Ponta do Lápis. 

Produziu-se também com isso uma progressiva fragmentação dos processos produtivos e do trabalho, em geral, desenvolvendo-se enormemente a chamada subcontratação, que dá novo sentido à terceirização (como intervenção de terceiros, que podem ser inumeráveis e criam redes e empresas de novo tipo, muito diversificadas). Ao mesmo tempo foi se produzindo uma tendência à personalização da demanda que condiciona progressivamente a produção, frente a tradicional produção em massa das cadeias de montagem, o que pode supor uma mudança de escala e explica que esse processo tenha sido denominado pós-fordista, enfatizando somente os aspectos técnicos destas mudanças. De qualquer maneira, deve-se ressaltar que se formularam outras explicações, como a chamada teoria da regulação (Boyer, 1987) ou da desorganização do capitalismo (Lash e Urry, 1987), ambas centradas em destacar a flexibilização que vem se produzindo em todos os âmbitos. Por outro lado, finalmente, se enfatizou a formação de uma sociedade organizada em redes e baseada essencialmente na informação, que inclui uma explicação mais ampla e complexa da dinâmica econômica do mundo contemporâneo (Castells, 1996).

Dentro desse contexto geral, que é necessário continuar estudando e debatendo, já se trabalhou pessoalmente na perspectiva de privilegiar o papel do consumo como novo reorganizador de todo o sistema produtivo, das dinâmicas sociais e da produção (e consumo) da cidade e do território. Novamente, neste aspecto deve-se questionar uma certa orfandade teórica, ao menos dentro da disciplina da Geografia, em geral, com a obsolescência relativa das obras que foram fundamentais na década de 1970, que não levaram a contemplar esta perspectiva do consumo mais do que como demanda necessária aos interesses da produção ou do consumo coletivo imprescindível na chamada reprodução da força de trabalho. Há que sinalizar, logicamente, exceções importantes especialmente no ramo da Antropologia cultural e nos estudos culturais, em geral, com autores como Néstor García Canclini (1995), para a América Latina, ou Jameson (1984), Appaduraj (1986), McCraken (1990) ou Miller (1995), para o mundo anglo-saxão***.

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Foto: Raoni Barbosa.

 O consumo de bens, produtos e de serviços, de tempos e de espaços deve-se configurar como a variável explicativa fundamental da sociedade contemporânea, com o desenho de uma nova cultura que se debate entre o local e o global, e com impactos decisivos no social e no econômico, administrada apenas por um sistema político mais rígido do que poderia se esperar *¹. Esta nova configuração deve levar a uma reclassificação das atividades econômicas e a uma reflexão sobre o papel predominante da distribuição e da gestão. Neste sentido, e por causa da maior facilidade na obtenção dos dados econômicos, grande parte da investigação pessoal se centralizou no estudo das estruturas comerciais urbanas, mesmo que com um sentido amplo de comércio, o que inclui grande parte dos serviços que têm contato direto com o público (Carreras et al., 1990, 2001 e 2003). No trabalho de campo, nas entrevistas e nas pesquisas realizadas durante as investigações centralizadas no caso de Barcelona essencialmente (com análise comparativa com Madri, Lisboa e Toulouse e, ainda que menos, com São Paulo) foram alcançados alguns resultados sobre o consumo em si mesmo, embora sem alcançar ainda uma explicação demasiado completa (Carreras, 1999).

Notas:
*. Defende-se aqui o termo anglo-saxão de globalização, diante ao de mundialização dos franceses, dado ao significado absolutamente diferente e estrutural da nova organização mundial em uma sociedade da informação (Castells, 1996).
**. É curioso indicar como a chamada cidade global de Saskia Sassen coincide muito automaticamente talvez com a sede das três principais bolsas do mundo que constituem a referência para todas as demais: Nova York, Londres e Tóquio.
***. Cabe destacar, já neste sentido, a tradução ao português de parte da obra do antropólogo britânico Don Slater (Slater, 2001).
*¹. Faz-se referência aqui à pervivência do papel do Estado além do que era dado a se pensar. 

As mudanças na sociedade

No nível social há que se registrar também uma mudança fundamental que se mostra especialmente nas dinâmicas de fragmentação da família, como unidade tradicional de agrupação entre a sociedade e o indivíduo, culminando assim na realidade, nas mudanças iniciadas no nível teórico durante o século das Luzes. A reprodução do tamanho da família, assim, levou à multiplicação das famílias unipessoais, individualizando as unidades de consumo urbano. O próprio perfil do indivíduo também foi analisado em sua complexidade e dinâmica, levando à definição de uma sociedade de indivíduos que podem desenvolver papeis diferentes em momentos e lugares distintos (Elias, 1987).

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Parada do Orgulho LGBT de São Paulo 2015 – manifetação por direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Foto: Amauri Nehn/ Estadão Conteúdo/ UOL Notícias

Novos conflitos sociais tornam aparentes essas mudanças, especialmente no que se refere a alguns temas. Uns ligados ao gênero, com o aumento da violência doméstica, mantendo as lutas pela igualdade entre homens e mulheres e pelos direitos de gays e lésbicas. Outros relacionados com a crescente marginalização dos jovens, a formação das chamadas tribos urbanas, e a dos velhos e sua nova exploração. Outros, finalmente, relacionados com as novas migrações, cada vez com maiores itinerários e uma pluralidade cultural maior, favorecidas pela relativa flexibilização e mudanças das fronteiras políticas tradicionais.

De qualquer maneira, há que se sinalizar que os novos grupos sociais surgidos em torno dessas mudanças (que alguns acham que não são tão novas) se superpõem, sem eliminar nem desmentir, a divisão geral da sociedade urbana em classes, embora já não seja com uma base exclusivamente econômica. Por causa da importância que as mudanças culturais diversas nas diferentes culturas tem, a mestiçagem, a hibridação e a multiculturalidade aparecem como soluções básicas, mesmo que de difícil aplicação, para esse novo conflitismo social.

Do ponto de vista da investigação, a Geografia humana tende a desenvolver estudos sociais muitas vezes como análise demográfica, somente. Isso supõe, por um lado, o predomínio das aproximações puramente quantificadoras, ficando o social como uma explicação fragmentada e pontual. Por outro, isso supõe também forte dependência a respeito das fontes estatísticas oficiais em busca da exaustão dos universos estudados, utilizando muito escassamente as aproximações qualitativas, as sondagens e as tendências. Assim, entroncam-se como o velho debate sobre a variável independente, que logicamente não existe, e que deveria levar a enfocar a Geografia social, em grande parte, como uma Geografia cultural.

As mudanças no tempo

Neste caso, logicamente, não se trata tanto de que o tempo tenha mudado por si mesmo, mas que mudam sua concepção e sua experiência. A vivência do tempo, dos tempos na cidade, também está mudando de forma significativa, como consequência da flexibilização dos horários de trabalho e do aumento da rapidez das comunicações de todos os tipos. Milton Santos (1996) destacou já nos anos 1990 a importância da diferença dos ritmos do tempo vivido por diferentes pessoas e grupos sociais, definindo um tempo rápido e um tempo lento como extremos de diferentes possibilidades de vivenciar os tempos na cidade. Essas mudanças de vivência dos tempos têm uma influência especialmente marcada na progressiva desregulamentação do calendário e dos horários laborais. A conformação de uma sociedade de consumidores está condicionando basicamente essas mudanças com a alteração e alongamentos das temporadas turísticas e dos horários comerciais, por exemplo, elementos que geram grande confrontação e debate entre os diversos agentes sociais. O avanço progressivo da aposentadoria e a redução da jornada de trabalho em alguns países, assim como o aumento da greve em quase todos, levaria também ao desenvolvimento da chamada sociedade do ócio, mais que do trabalho. Mas, por outro lado, há que se frisar também que, ao mesmo tempo, aumentaram as empresas de todos os tipos que prestam seus serviços 24 horas.

Da mesma forma registraram-se mudanças importantes na idade em que as pessoas decidem fazer ou podem fazer determinadas coisas. Depois aumento constante, mesmo que desigual, da esperança de vida, da progressiva diminuição da maioridade, atrasa-se ou avança-se, de acordo com as circunstâncias, a entrada e a saída no mercado de trabalho, se atrasa a idade do matrimônio ou da formação  de um núcleo familiar e especialmente a idade da concepção do primeiro filho. Este último fato, que tem claras consequências na diminuição das taxas de fecundidade, contrasta com os grandes avanços de técnicas de fertilização humana e dos hábitos de adoção de crianças em uma escala internacional, que permitiria aumentar enormemente essas taxas.

Como uma das consequências sociais mais importantes que geram essas mudanças nos tempos vividos, cabe destacar que se produziram também uma flexibilização e novas dinâmicas na realização dos papeis sociais tradicionais dos indivíduos. Neste sentido aparece na sociedade dos consumidores cada vez mais um certo esfumaçamento das fronteiras tradicionais entre o feminino e o masculino, ou entre a juventude e a velhice, entre ricos e pobres, o que permite gerar novas possibilidades de estudo e novos conflitos sociais.

As mudanças no espaço

Como é lógico, todo esse conjunto de mudanças, que se reproduzem em ritmos e momentos diferentes, provocam uma série de novas mudanças e novas dinâmicas no território. No campo da planificação territorial, especialmente, urbana, com a crise do “zoning” que vinha consolidar a ordem “fordista”, que predicava uma coisa em cada lugar, um lugar para cada coisa, e propunha a divisão das 24 horas em três blocos separados; a inclusão da dinâmica das mudanças econômicas, sociais e temporais e a consequência  de tal flexibilização deixaram sem aplicação o zoneamento unifuncional dos distintos fragmentos do mosaico urbano. A partir daqui, as administrações locais tiveram de entrar em uma série contínua de mudanças nas qualificações do planejamento já aprovado, ao mesmo tempo que os novos planejamentos se fazem mais formais e morfológicos e, sobretudo, pontuais, ou se convertem em estratégicos de corte empresarial.

Uma das manifestações importantes deste relativo relaxamento do planejamento (Cervellatti, 1984) foi a reconsideração da densificação urbana, que passou a ser combatida a ser progressivamente valorizada, com argumentos tanto meio ambientais como culturais*. Outras manifestações se referem à reabilitação do patrimônio urbano, para a conservação da memória cidadã e, também, como geração de uma imagem de marca para a valorização turística da cidade no mercado internacional; isso se manifestou em uma grande multiplicação de políticas e renovação dos bairros centrais, que coincide com a difusão da chamada gentrificação (Smith e Williams, 1986). A eclosão do movimento cultural que se autodenominou pós-moderno (Habermas, 1988) deu base teórica a muitas dessas políticas de reabilitação, introduzindo modelos de novo ecletismo artístico e temporal e criando a possibilidade de escolherem vários cenários diferentes por parte dos cidadãos e dos administradores da cidade.

Berrini
São Paulo global – Ponte Estaiada e a região da Avenida Luis Carlos Berrini atrás. A imagem de uma metrópole globalizada, moderna e competitiva diante do mercado internacional.  

A crescente importância do consumo do espaço urbano colocou no primeiro plano das políticas de muitas cidades um interesse especial pela paisagem urbana em relação com o desenvolvimento da chamada sociedade do espetáculo (Debord, 1992), e da cultura da imagem. O papel dos arquitetos** e de outros técnicos foi assim magnificado e a contratação de suas obras em uma escala internacional concretizou boa parte da homogeneização de muitos espaços urbanos que se considera vinculada com exagero ao desenvolvimento  da globalização. As cidades investem crescentemente na fixação de uma imagem competitiva no mercado internacional com o fim de atrair todo o tipo de investimentos produtivos, imobiliários, turísticos ou de qualquer outro tipo.

Estas mudanças, junto ao crescimento contínuo das cidades em uma escala mundial e a multiplicação das metrópoles, apresentam cada vez mais o problema da compreensão da cidade como uma totalidade e suas dificuldades. Contrapõe-se assim a concepção holística da cidade por parte dos analistas, científicos, técnicos e políticos urbanos à fragmentação vivida pela maioria dos cidadãos em seus itinerários cotidianos. Essa contraposição acarreta como uma de suas consequências perversas um distanciamento e uma incompreensão  progressiva dos cidadãos a respeito da administração urbana que deve ter algumas consequências na crise geral do sistema produtivo democrático na época contemporânea.

Notas:
*. Isto, ao menos, se produz em algumas cidades europeias, especialmente nos estudos metropolitanos da cidade de Barcelona.
**. O papel predominante dos arquitetos foi denunciado em Barcelona nos últimos anos (Moix, 19), cuja influência se estendeu a outras cidades em escala internacional com a criação do chamado modelo Barcelona, que necessita de uma revisão crítica em profundidade (Carreras, 1995).

 Mudanças e continuidade na cidade

Como conclusão devem-se frisar alguns pontos gerais já que é sabido que a dialética constante entre a mudança e a continuidade em Geografia resulta com frequência em uma simples consequência metodológica da escolha da escala do estudo. Os estudos de grande escala, tanto territorial como temporal, acentuam a visibilidade das mudanças e da diversidade, além de dificultarem a classificação e explicação dos fatos estudados. Contrariamente, os estudos realizados em pequena escala levam a destacar as continuidades e as permanências, as regularidades e a homogeneidade. Por isso, é imprescindível tentar realizar qualquer estudo aplicando a análise multiescalar clássica na Geografia (Lacoste, 1977) que busque explicar a complexidade.

Igualmente, há que se ter sempre em conta que as mudanças, por mais importantes que sejam, não acabam automaticamente com o anterior, nem no mesmo momento, e que quase nunca totalmente. Cada território apresenta umas inércias e umas resistências particulares à introdução das inovações e mudanças, o que permite certa revalorização das aproximações clássicas dos processos de difusão do geógrafo sueco Törsten Häggerstrand, incluindo sua posterior evolução da quantificação matemática à quantificação subjetiva. A particular articulação de resistências e inovações pode construir a essência do local e explicaria suas conexões com o global. Na cidade este fato é especialmente importante, o que levou sua consideração como palimpsesto, efeito ampliado pelas apropriações e representações diferentes que são feitas por cada cidadão. Do mesmo modo, as mudanças, todas elas, de qualquer tipo, não podem ser isoladas dos momentos em que se produzem, com o fim de documentar e contextualizar os processos, suas causas e seus ritmos. Este fato obriga a manter as tradicionais relações entre a Geografia e a História, mesmo que baseada em novos parâmetros de colaboração. Recorrer ao rigor histórico não deve ser confundido com ser historicista.

Esse mesmo fato de não considerar a inovação como anuladora do anterior deve ser aplicado especialmente ao corpo da teoria; pensar que uma nova explicação anula ou supera as anteriores não deixa de significar uma concepção “desenvolvista” de base biológica da evolução do pensamento, muito arraigada nos anos 1960 que deveria ser totalmente descartada. Cada teoria, cada hipótese mantém algum valor explicativo, mais ou menos importante e complexo, aplicável em algum lugar e talvez não em outros, que deve ser por isso contextualizado e analisado para sua posterior incorporação à explicação geral e complexa de fenômenos sociais, como a cidade e o urbano. 

Dentro deste contexto geral cabe se perguntar, seguidamente, o que permanece da explicação da cidade industrial, que analisou a Geografia clássica em seus diversos enfoques. Parece evidente que ainda permanecem os principais mecanismos do mercado do solo e a combinação de estratégias dos diversos agentes da produção do espaço urbano, assim como as bases essenciais da divisão da sociedade em classes. De qualquer maneira, essa evidência não pode anular a visibilidade das mudanças importantes que se produzem na reprodução dos mecanismos de poder que têm claras consequências sobre os anteriores.

Neste sentido, e em primeiro lugar, deve-se enfatizar os efeitos da internacionalização do mercado e do consumo; inclusive do mercado do solo urbano que tradicionalmente se havia mantido no âmbito local ou regional ou, como máximo, nacional, no caso das capitais e das grandes cidades, e hoje se ampliou a um mercado global. As contradições entre o local e o global aparecem assim como um dos temas de estudos mais relevantes  nas grande metrópoles e na maior parte das cidades e territórios, levando à necessidade de investigação das estratégias das companhias imobiliárias internacionais e da concorrência entre cidades, com temas-chave como as bases teóricas  do chamado modelo Barcelona, que deve ser discutido com rigor em sua criação e em suas aplicações tão diversas.

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Centro moderno e globalizado de Barcelona, Espanha. 

Por outro lado, em segundo lugar e no nível teórico cabe se perguntar sobre a vigência atual do próprio conceito de cidade e dos outros conceitos que aparecem ligados a este como: metrópole ou bairro, centro ou periferia. Não está claro que a mesma palavra deva servir para denominar realidades que podem chegar a ser muito diferentes, tanto a escala histórica (de Jericó a Brasília, como apontava Paul Bayroch em  1985) como a escala mundial contemporânea (de Nova York ao Cairo ou Xangai). Edward Soja desenvolveu as intuitivas hipóteses de Jane Jacobs dos anos 1960, aplicando o conceito de contiguidade criativa para explicar a essência e a permanência do urbano através das civilizações, do tempo e do espaço (Soja, 2000). Sem necessidade talvez de novas palavras, a cidade continua sendo um conceito geográfico por excelência, já que permite incluir os aspectos físicos e morfológicos, assim como os sociais, econômicos, políticos e culturais que constituem a complexidade dinâmica da sociedade urbana.

Os diferentes tempos com que se vive a cidade estabelecem a questão de quem pode contemplar hoje a totalidade de cada cidade, especialmente nas grande metrópoles. A vida cotidiana da maioria dos cidadãos transcorre em itinerários relativamente limitados e repetidos, o que impede a compreensão da cidade com um todo; apenas uma minoria de cidadãos tem um âmbito maior, dentro e fora da cidade, e consegue uma visão mais totalizante; assim como os visitantes e turistas cujo desconhecimento facilita a confecção de uma ideia geral e generalizante. Entre essas visões totalizadora e generalizadoras destaca-se a dos políticos, administradores e técnicos e suas consequências sobre a crise atual dos princípios do sistema democrático. Mas, deve-se destacar também, o papel dos estudiosos, especialmente neste caso, dos geógrafos urbanos que elaboramos a análise e a síntese que, com maior ou menor êxito, se difundem sobre nossas cidades. Isso se deve levar ao aprofundamento da reflexão sobre o papel do próprio investigador na simulação e na dissimulação da realidade estudada e acabar com a simplificação de usar a cidade como um sujeito coletivo.

Finalmente, a importância crescente de variáveis ligadas à cultura, em seus sentidos mais amplos, deve ajudar a reforçar os estudos das culturas urbanas. As mudanças culturais produzidas pela globalização da sociedade, da informação e dos consumidores constituem um dos elementos mais significativos da vida cotidiana e da organização da vida social urbana. Ainda assim, deve-se reavaliar os processos de formação das identidades em diferentes grupos sociais em cada cidade e suas consequências sobre a convivência. Tudo isso aponta, sobretudo a partir dos estudos do antropólogo argentino Néstor García Canclini, ao fenômeno da hibridação e da multiculturalidade.

¹. Carles Carreras – Professor da Universidade de Barcelona

Organização das imagens: Lucas Rocha

Referência:

CARLOS, Ana Fani; CARRERAS, Carles (Orgs.). Urbanização e mundialização: estudos sobre a metrópole. São Paulo: Editora Contexto,  2005.

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