Uma breve História da Sistematização da Geografia

Por Lucas Rocha

A forma como entendemos hoje a Geografia passou por diversas mudanças até se estruturar da forma científica como é reconhecida atualmente. Os fundamentos teóricos e metodológicos surgiram no século XIX, no território tido hoje em dia como Alemanha, assim como outras ciências modernas tais como a Sociologia, Antropologia, Biologia, etc.

Entretanto, o tido “conhecimento geográfico” esteve já entre pensadores há muito mais tempo, remetendo-se os primeiros registros ao período da Grécia Antiga. De acordo com Moraes (2007), esse conhecimento era disperso e não apresentava pressupostos de método necessários para serem continuados por uma determinada linha de raciocínio. Dessa forma, ao longo da Antiguidade Clássica, os conceitos da relação entre o homem e seu meio já começaram a ser analisados, todavia, os principais destaques relacionados à produção geográfica voltaram-se para descrição das formas terrestres, estudos sobre meteorologia, descrições regionais e mapas razoavelmente precisos. Alguns pensadores se destacaram tais como Tales, Anaximandro, Estrabão, Heródoto, Eratóstenes, Hipócrates, Aristóteles e Cláudio Ptolomeu.

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Representação do mundo de acordo com Estrabão, por volta do século I d.C. Detalhes para a costa do Mar Mediterrâneo, cheia de detalhes e bem mensurada. Já os confins dos três continentes ainda não eram muito conhecidos pelo autor, porém é de se admirar tal produção há 2000 anos, aproximadamente. Imagem: Wikipedia.
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Este mapa consiste em um manuscrito do século XV, o qual reproduz o mapa múndi conforme Ptolomeu, no século II d.C. É interessante notar um maior detalhamento dos contornos dos continentes, principalmente o europeu. Também, destacam-se, com um pouco mais precisão, os principais rios e alguns países tais como “Sinae” (China), no extremo leste, a ilha de “Taprobane” (Sri Lanka), um pouco mais centralizado a sudeste e “Aurea Chersonesus” (península da Malásia), a sudeste. Créditos: Francesco di Antonio del Chierico. Imagem: Wikipedia.

Ao longo da Idade Média, o conhecimento geográfico continuou a ser produzido de forma fragmentada, porém importantes obras tais como a de Bernhardus Varenius, já no século XVI, são destacadas como um dos fundamentos da teoria de Newton (MORAES, 2007). Fora do continente europeu a produção geográfica também se desenvolveu de forma interessante com destaques para intelectuais tais como Muhammad Al-Idrisi, o qual desenvolveu conceitos de cartografia consideravelmente avançados para a época e produziu mapas bastante precisos do norte da África, sul da Europa e Oriente Médio, e Ibn Khaldun, considerado por muitos como o “Pai da Economia”, seus estudos foram percursores de diversas áreas do conhecimento humano e tiveram impacto em futuras produções de caráter geográfico.

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“Tabula Rogeriana”, de Muhammad Al-Idrisi, feito sob encomenda para o rei Roger II, da Sicília, no século XII. Considerado um dos mapas mais detalhados da Antiguidade. Embora seus contornos não estejam tão precisos quanto os mapas gregos, este tem muito mais informações sobre a Ásia, África e Europa, tornando-o um instrumento valioso. Imagem: Wikipedia. 

Embora haja notáveis obras geográficas produzidas em diferentes civilizações e no decorrer da Antiguidade até a Idade Média, não existia até então um padrão contínuo de análises de Geografia. O geógrafo Antônio Carlos Robert de Moraes (2007) indica que as condições históricas da sistematização do conhecimento geográfico começaram a se estabelecer a partir do início da constituição do modo de produção capitalista no globo. Logo, ao passo em que se começou a ter a real dimensão das distâncias, assim como dos continentes e também um conhecimento básico sobre diversos povos, seus costumes e suas culturas, a Geografia passa a ter maior necessidade de se legitimar como um conhecimento fundamental.

Essas condições se iniciaram no final da Idade Média e início da Idade Moderna. Elas foram incentivadas pela então burguesia europeia em busca de aumentar suas relações de poder econômico através da conquista territorial. Pela primeira vez na história humana é possível se indicar os pressupostos da constituição de um espaço mundializado, caracterizado pela relação direta entre territórios fisicamente distantes no globo, porém econômica e politicamente ligados mediante a um processo produtivo destinado ao consumo em regiões remotas (MORAES, 2007).

Portanto, na medida em que o processo mercantilista se consolida, o arcabouço de informações geográficas sobre os diversos continentes se expande, assim como o conhecimento sobre as populações nativas de diferentes lugares, o entendimento sobre suas culturas e práticas. Formam-se as condições básicas para que se pudesse pensar nas primeiras teorias do pensamento geográfico, propriamente ditas.

O campo filosófico também foi responsável por fomentar um ambiente crítico necessário para se enfatizar a legitimidade da ciência geográfica. Esse mesmo período se caracterizou por reafirmar o conhecimento científico e valorizar a racionalidade humana, a qual buscava entender os fenômenos através do senso crítico e investigatório, não aceitando dogmas teocráticos impostos pela Igreja Católica até então na Europa. Diversos filósofos desenvolveram também reflexões acerca da relação do homem com o espaço, sua influência no meio e questões sobre a evolução das sociedades, com destaque para Kant, Liebniz e Hegel.

O campo da Economia e Política no período iluminista contribuiu, de certa forma, para a necessidade de se obter maior conhecimento sobre a sociedade e seu território em termos físicos afim de se construírem os conceitos que norteariam o gerenciamento do Estado, assim como seus recursos. É possível se verificar temas geográficos presentes em obras de Montesquieu, Russeau e mesmo Malthus e Adam Smith (MORAES, 2007).

Porém, é no campo da Biologia que a ciência geográfica se fundamenta com maior legitimidade. Através da Teoria do Evolucionismo, propostas por Darwin e Lamarck, a qual indica a importância do meio para a sobrevivência das espécies mediante o processo de adaptação, o conhecimento geográfico torna-se, portanto, fundamental para se entender a formação do meio físico e das sociedades (MORAES, 2007).

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“A Origem das Espécies”, de Charles Darwin. Edição de 1859. Livro que revolucionou o conhecimento científico da época e ajudou a legitimar a Geografia através dos conceitos da influência do meio sobre o homem, ao passo que também influenciou os primeiros geógrafos por meio de uma visão naturalista da sociedade. Imagem: Wikipedia. 

O processo de nascimento e consolidação da Geografia como ciência está, pois, intrinsecamente relacionado ao processo de expansão do capitalismo na Europa. O início da Geografia como ciência moderna possibilitou o estudo e o agrupamento de informações sobre os mais diferentes lugares do planeta, por outro lado, legitimou o colonialismo europeu, seja através do conhecimento de recursos naturais necessários para impulsionar a industrialização europeia, seja através dos grandes equívocos difundidos na época sobre o determinismo geográfico, responsável pela crença da superioridade racial de determinados povos sobre outros.

A Geografia em seu começo foi um instrumento da burguesia, que possibilitou o domínio das relações capitalistas no mundo mediante a expansão de um modo de produção e exploração global. A burguesia, que desde o final da Idade Média lutava ideológica e politicamente contra os resquícios do feudalismo, se consolidou como a grande vencedora e constituiu a formação dos Estados modernos. Assim, a ciência geográfica foi usada no intuito de satisfazer interesses específicos das classes que constituíam o poder político-militar do Estado e as classes que possuíam poderes econômicos, ou seja, os modos de produção capitalista (SANTOS, 2012).

A princípio, muito influenciada pelo conteúdo das teorias evolucionistas, a Geografia adquiriu um viés naturalista. O método de análise empregado pelos primeiros geógrafos consiste em uma visão bastante positivista, cartesiana e sistêmica. Ou seja, para se consolidar como ciência, os primeiros geógrafos utilizavam métodos construídos a partir das ideias de Auguste Comte, as quais valorizavam a evolução do pensamento religioso para o racional, valorizavam a observação e a descrição como fatores básicos da relação sujeito – objeto como ciência legítima.

Já a visão cartesiana se dava pelo fato da busca da observação e divisão do objeto até a mínima parte, sendo assim possível estudar e aprofundar os conhecimentos nos seus meros detalhes. Tal método, bastante empregado na Biologia, é importante, porém a visão atomística introduzida por Descartes dificulta, por outro lado, o entendimento holístico de determinado fenômeno, sendo perigoso esse tipo de análise para outras ciências como a Geografia.

A visão sistêmica fundamenta-se através das ideias do filósofo alemão Friedrich Schelling, o qual fomenta a visão da natureza como um organismo, composto por diferentes sistemas que se relacionam. Esses conceitos vigoram nas obras dos primeiros geógrafos, com destaque para os considerados “pais da Geografia”, os alemães Alexander von Humboldt e Karl Ritter.

A Geografia do ontem, a Geografia do hoje

A Geografia, ciência “nascida no decorrer do triunfo da burguesia”, conforme escreve Jean Dresch (1949, p. 88), marcou sua história através dos interesses colonialistas da Europa do século XIX. Uma ciência que, por um período considerável, legitimou a exploração de povos e regiões, hoje é a ciência que busca entender o espaço através da interação da sociedade e do seu território.

A ciência, que antes serviu como meio de conquistar riquezas, hoje mostra para o mundo os absurdos da desigualdade geradas pela concentração de renda. A ciência que nasceu do seio daqueles que enriqueceram às custas da alienação do trabalho, hoje é a ciência que busca refletir sobre as condições dos povos, mapear os fenômenos e analisá-los de forma crítica para a sociedade. 

Temos orgulho de nossa ciência, a Geografia, sabemos da importância que ela tem e do seu papel em prol da justiça social e das diminuições das desigualdades socio-espaciais. É importante sim sabermos da história dela afim de que não cometamos os mesmos erros do passado no sentido de usá-la de modo acrítico ou descontextualizado. A Geografia é uma ciência poderosa, estratégica, porém seu conhecimento deve servir a todos!

A proposta é, aos poucos, mostrarmos mais sobre a História da Geografia. Postaremos mais textos específicos sobre as correntes da Geografia moderna até as atuais, assim como faremos publicações mostrando um pouco melhor sobre alguns geógrafos importantes em cada uma dessas fases. Aproveitem a leitura!

Referências:

MORAES, Antônio Carlos Robert de. Geografia: Pequena História Crítica. Annablume Editora, 21ª Edição. São Paulo: 2007.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova: Da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. Edusp. 6ª Edição. São Paulo: 2012.

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