O Discurso e o Poder

Por Boaventura de Souza Santos*

 

Não restam dúvidas que a produção jurídica dos estados capitalistas contemporâneos, em geral, têm ao seu serviço um poderoso e complexo aparelho coercitivo detentor do monopólio da violência legítima, que envolve várias forças policiais, para-militares e militarizadas e, em caso de emergência, as próprias forças armadas, para além do universo totalitário das instituições que integram o sistema prisional. Este aparelho coercitivo, inscrito desde o início da lógica do modelo constitucional do estado liberal, está na raiz da conversão do direito em centro de disciplinação e de controle social do estado capitalista.

passe-livre-em-sampa-foto-de-pedro-chavedar
Ação repressiva e coercitiva do Estado contra o direito de livre manifestação política dos cidadãos organizados do Passe Livre, na Avenida Paulista em 2013. Foto: Pedro Chavedar.

Uma das suas características principais reside em que a sua eficiência não resulta apenas das medidas efetivamente acionadas, mas também da simples ameaça do acionamento, isto é, do discurso da violência que, aliás, se nuns casos é verbal, noutros resulta tão só da presença demonstrativa (agressivamente silenciosa e silenciante) dos artefatos da violência legal. E entre a repressão da transgressão e a ameaça há ainda que referir o domínio crescentemente importante da repressão preventiva, isto é, o conjunto de medidas acionadas para desmantelar tudo o que o aparelho coercitivo define como plano de transgressão da legalidade.

Pode mesmo dizer-se que o dispendioso apetrechamento tecnológico e profissional do aparelho coercitivo das sociedades capitalistas avançadas nos últimos anos tem  visado sobretudo a repressão preventiva. Por outro lado, estando embora o acionamento dos mecanismos de controle violento subordinado a normas e regulamentos gerais, o critério de eficiência tende crescentemente a dominar o critério de legalidade, o que, de resto, é facilitado pela invisibilização do controle por via da sofisticação tecnológica com que é executado.

Por outras palavras, o controle torna-se tanto mais íntimo quanto mais remoto. Apoiado neste forte e diversificado dispositivo de coerção, o direito do estado capitalista procede à consolidação (contraditória) das relações de classe na sociedade, gerindo os conflitos sociais de modo a mantê-los dentro de níveis tensionais toleráveis do ponto de vista da dominação política de classe que ele contraditoriamente reproduz.

Referência:

SANTOS, Boaventura de Souza. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra, número especial em homenagem ao Prof. Dr. J. J. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1979, pp. 278 – 279. (Grifos do Blog)

*Boaventura de Souza Santos é professor de Direito e Sociologia na Universidade de Coimbra, Portugal. É internacionalmente reconhecido como um dos grandes expoentes das Ciências Sociais, com publicações em português, inglês, espanhol, francês e alemão.

Deixe um comentário