Sobre o conceito de Anarquia

Por Zygmunt Bauman

O conceito de “anarquia” carrega o peso de sua história essencialmente antiestatal. De Godwin a Kropotkin, passando por Proudhon e Bakunin, os teóricos e fundadores dos movimentos anarquistas apresentaram esse termo como a designação de uma sociedade alternativa, o avesso de uma ordem coercitiva e imposta pelo poder. Essa sociedade que postulavam diferiria da existente devido à ausência do Estado – a síntese do poder desumano, intrinsecamente corruptor. Uma vez desmantelado e eliminado o poder do Estado, os seres humanos recorreriam (retornariam?) aos valores da ajuda mútua, usando, como Mikhail Bakunin vivia repetindo, sua capacidade natural de pensar e de se rebelar¹.

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Greve de 1917 em São Paulo. Movimento Anarquista (com bandeiras pretas) marchando ao lado de operários. Imagem: Wikipedia.

A fúria dos anarquistas do século XIX concentrava-se no Estado – no Estado moderno, para ser preciso, uma novidade na época, que ainda não estava entrincheirado de modo suficientemente sólido para reclamar legitimidade tradicional ou basear-se na obediência rotinizada. O Estado empenhava-se em obter um controle meticuloso e ubíquo sobre todos os aspectos da vida humana que os antigos poderes haviam deixado para os recursos coletivos locais. Reclamava o direito e os meios legais para interferir em áreas das quais os antigos poderes, embora opressivos e exploradores, mantinham distância. Em particular, incumbiu-se de desmantelar les pouvoirs intermédiaires, ou seja, as formas de autonomia local, de autoafirmação comunal e de autogoverno. Sob ataque, as formas habituais de solução dos conflitos e problemas gerados pela vida em conjunto pareceram ser, para os pioneiros dos movimentos anárquicos, dadas de forma não problemática e, portanto, “naturais”. Também eram imaginadas como autossustentáveis e totalmente capazes de manter a ordem sob todas as condições e circunstâncias, desde que protegidas das imposições originárias do Estado. A anarquia, isto é, uma sociedade sem o Estado e suas armas de coerção, era visualizada como uma ordem não coercitiva na qual a necessidade não se chocaria com a liberdade nem esta se colocaria no caminho dos pré-requisitos da vida em grupo.

O Weltanschauung do anarquismo inicial compartilhava com o socialismo utópico da época um forte sabor nostálgico (os ensinamentos de Proudhon e Weitling simbolizando sua íntima afinidade); o sonho de sair da estrada em que se havia entrado com o nascimento de uma nova e moderna forma de poder social e de capitalismo (ou seja, a separação entre o negócio e o lar) – de volta ao conforto, mais romantizado do que genuinamente livre de conflito, da unidade comunal de sentimentos e ações. Foi nessa forma inicial, nostálgica e utópica, que a ideia de “anarquia” se estabeleceu na aurora da sociedade moderna e na maioria de suas interpretações político-científicas.

Mas havia no pensamento anarquista outro significado, menos demarcado pelo tempo, oculto por trás de sua ostensiva rebelião antiestatal e, por essa razão, facilmente negligenciável. Esse outro significado é próximo daquele da imagem da communitas de Victor Turner:

É como se houvesse aqui dois “modelos” importantes, justapostos e alternados, para o inter-relacionamento humano. O primeiro é o da sociedade como um sistema estruturado, diferenciado e frequentemente  hierárquico de posições político-jurídico-econômicas… O segundo… é o da sociedade como uma communitas, comunidade ou mesmo comunhão, desestruturada ou estruturada de forma rudimentar, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos dignitários rituais².

Turner usava a linguagem da antropologia e localizou a questão da communitas dentro da problemática antropológica costumeira, preocupada com as diferenças entre as formas pelas quais os agregados humanos (“sociedades”, “culturas”) asseguravam sua durabilidade e sua autorreprodução contínua. Mas os dois modelos descritos por ele também podem ser interpretados como representações de modos complementares de coexistência humana que se misturam em diversas proporções em todo e qualquer grupo humano, e não como diferentes tipos de sociedades.

Nenhuma variação do convívio humano é plenamente estruturada, nenhuma diferenciação interna é totalmente abrangente, inclusiva e livre de ambivalência, nenhuma hierarquia é total e congelada. A lógica das categorias imperfeitas preenche a diversificação endêmica e a desordem das interações humanas. Cada tentativa de completar a estruturação deixa grande número de “fios soltos” e significados contenciosos. Cada uma delas produz espaços em branco, áreas indefinidas, ambiguidades e territórios “de ninguém” que carecem de levantamentos e mapas oficiais. Todas essas sobras do esforço de trazer a ordem constituem o domínio da espontaneidade, da experimentação e da autoconstituição humanas. A communitas é, para o bem ou para o mal, o revestimento de todo o conjunto de societas – e na sua ausência (se isso fosse concebível) esse conjunto se dispersaria:  as societas se desintegrariam em suas suturas. São as societas com sua rotina e a communitas com sua anarquia que, em conjunto, numa cooperação relutante e dominada pelo conflito, fazem a diferença entre a ordem e o caos.

A tarefa que a institucionalização, com seus braços coercitivos, realizou de modo deficiente ou deixou de cumprir ficou para ser consertada ou completada pela inventividade espontânea dos seres humanos. Tendo-lhe sido negado o conforto da rotina, a criatividade (como apontou Bakunin) tem apenas duas faculdades humanas em que se basear: a habilidade de pensar e a tendência (e coragem) de se rebelar. O exercício de cada uma das duas é repleto de riscos e, ao contrário da rotina arraigada e protegida de modo institucional, não se pode fazer muito para minimizar esses riscos, muito menos eliminá-los. A communitas (que não deve ser confundida com as contrassociedades que reclamam o nome de “comunidade”, mas que se ocupam em emular os meios e recursos da societas) habita a terra da incerteza – e não sobreviveria em nenhum outro país.

A sobrevivência e o bem-estar da communitas (e também, indiretamente, da societas) dependem da imaginação, inventividade e coragem humanas de quebrar a rotina e tentar caminhos não experimentados. Dependem, em outras palavras, da capacidade humana de viver em riscos e de aceitar a responsabilidade pelas consequências. São essas capacidades que constituem os esteios da “economia moral” – cuidado e auxílio mútuos, viver para os outros, urdir o tecido dos compromissos humanos, estreitar e manter os vínculos inter-humanos, traduzir direitos em obrigações, compartir a responsabilidade pela sorte e o bem-estar de todos – indispensável para tapar os buracos escavados e conter os fluxos liberados pelo empreendimento, eternamente inconcluso, da estruturação.

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¹. Ver o profundo estudo de Valentina Fedotova, “Anarkhia i poriadok” (Anarquia e ordem). Voprosy Filosofii 5 (1997), recentemente reimpresso numa coletânea de estudos da autora sob o mesmo título (Moscou, Editorial URSS, 2000, p. 27 – 50).

². Victor Turner, The Ritual Process: Structure and Anti-structure. Londres, Routledge, 1969,  p. 96.

Referência:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. pp.: 91 – 94. Rio de Janeiro, Zahar: 2009.

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