Há cidadãos neste país?

Por Milton Santos

Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que não o são? O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se de um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna.

O discurso das liberdades humanas e dos direitos seus garantidores é, certamente, ainda mais vasto. Tantas vezes proclamando e repetido, tantas vezes menosprezado. É isso, justamente, o que faz a diferença entre a retórica e o fato. O respeito ao indivíduo é a consagração da cidadania, pela qual uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo de direitos concretos individualizados. A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância.

A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna um estado de espírito, enraizado na cultura. É, talvez, nesse sentido, que se costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista, uma conquista a se manter. Ameaçada por um cotidiano implacável, não basta à cidadania ser um estado de espírito ou uma declaração de intenções. Ela tem o seu corpo e os seus limites como uma situação social, jurídica e política. Para ser mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis, mediante dispositivos institucionais que assegurem a fruição  das prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito de reclamar e ser ouvido.

A cidadania pode começar por definições abstratas, cabíveis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válida deve poder ser reclamada. A metamorfose dessa liberdade teórica em direito positivo depende de condições concretas, como a natureza do Estado e do regime, o tipo de sociedade estabelecida e o grau de pugnacidade que vem da consciência possível  dentro da sociedade civil em movimento. É por isso que, desse ponto de vista, a situação dos indivíduos não é imutável, está sujeita a retrocessos e avanços. Os homens, pela sua própria essência, buscam a liberdade. Não a procuram com a mesma determinação porque o seu grau de entendimento do mundo não é o mesmo. As sociedades, pela sua própria história, são mais ou menos abertas às conquistas do homem.

E os Estados nem sempre coincidem com a sociedade civil, mas, ao contrário, refreiam-lhe os impulsos, e frequentemente desrespeitam os indivíduos, sob as justificativas e disfarces mais diversos. A dialética  da vida social leva em conta o movimento desses fatores: o dado institucional, o dado econômico, o dado cultural e o dado individual interdependem e interagem.

F. C. Weffort (1981, pp. 139-140) mostra como, no seu clássico Citizenship and Social Class, Marshall reconheceu no interior das democracias modernas a existência de uma tensão permanente, uma “guerra”, diz ele em determinado momento, entre o princípio de igualdade implícito no conceito de cidadania e a desigualdade inerente ao sistema capitalista e à sociedade de classes (Marshall, 1965m p. 92).

Países com tradição de cidadania e outros não?

A cidadania evolui por meio de um processo de lutas e desenvolvidas paralelamente em diversos países, que leva da condição de “membro da sociedade nacional” no século XVII*, ao “direito de associação” no século XIX**, até serem alcançados os “direitos sociais” em pleno século XX***. Em um belo ensaio, Tereza Haguette (1981-1982) descreve a evolução que começa com a aquisição do status de cidadão, membro de uma sociedade civil reconhecida como tal, isto é, a conquista de direitos políticos individuais, prossegue com o reconhecimento de direitos coletivos, pertinentes  aos grupos que constituem a coletividade nacional e autorizados a formar associações representativas legitimadas, até aqui “um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantiriam ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação na herança social”.

A própria palavra cidadão vai se impor com a grande mutação histórica marcada na Europa com a abolição do feudalismo e o início do capitalismo. Marx e tantos outros autores saudaram a chegada do capitalismo com a abolição de vínculos de servidão entre o dono da terra e “seu” trabalhador, e o surgimento do trabalhador livre, dono dos meios de produção. As aglomerações humanas, os burgos, foram o teatro principal dessa luta e o palco dessa enorme conquista. Com o homem do burgo, o burguês, nascia o cidadão, o homem do trabalho livre, vivendo num lugar livre, a cidade.

Assim, com a passagem do feudalismo para o capitalismo, a do trabalho servil para o trabalho livre não se deu de uma noite para o dia. O processo de formação da cidadania não foi tão brutal como equivocadamente podem pensar os observadores longínquos da história, considerando os eventos como se fossem um ponto fixo no tempo. As relações sociais feudais e a forma de trabalho correspondente geraram, lentamente, um novo caldo de cultura, assentando as bases de um pensamento revolucionário e de sua expansão, oferecendo à rebeldia os fundamentos de um êxito que iria desembocar em novas relações sociais e de trabalho.

As conquistas cidadãs não ficaram aí. A prática dessa porção de liberdade adquirida foi  o aprendizado para novas liberdades, até que se chegasse às ideias modernas de sociedade civil, um corpo social que só existe porque há homens ciosos dos seus direitos; e existe a despeito do Estado. Não fora assim e o ideário liberal não se teria alastrado na Europa e, dela, não se teria transferido para outros continentes. É assim que esse projeto chega aos Estados Unidos, fazendo desse país seu principal bastião.

O fato, porém, é que não é lícito confundir o liberalismo de Tocqueville ou o cidadão da era do capitalismo concorrencial com o cidadão da era teletrônica. Impõe-se a necessidade de atualização do conceito e do instituto correspondente.

Em diversos países – e isso em maior ou menor grau -, o ideário da cidadania e a legislação correspondente foram se adaptando. A herança cultural, as novas ideias políticas, as novas realidades do mundo do trabalho, as novas definições do intercâmbio social foram os fermentos dessa mudança. As revoluções socialistas, desejosas de romper com as relações sociais impostas pelo capitalismo e de reconhecer os direitos das massas, tiveram, também, um papel dialético nessa transformação, ainda que críticos atuais do que chamam o “socialismo real” protestem contra a ausência de conteúdo liberal na promoção social empreendida no leste.

Notas:
*. “Com relação ao conceito de cidadania […] uma rápida incursão histórica nos mostra que, no século XIX, com a emergência do Estado-nação em toda a Europa, este conceito adquiriu um importante elemento: a qualidade de membro. Pelo simples fato de ser membro de um Estado-nação, todos os habitantes ascendiam ao status de cidadão, apesar de que o mais elevado direito do cidadão, o direito político de participar da construção da sociedade, se efetivaria somente através do voto. Até um passado bem recente – início do século XX – este direito era reservado a alguns […]” (T. Haguette, 1981-1982, p. 123).
**. “No século XIX, o direito de associação – que representa um importante direito político – foi incorporado ao status da cidadania, proporcionando as bases para a classe trabalhadora adquirir direito político. Em outras palavras, enquanto os direitos civis eram essencialmente individuais, o direito de assiciação deu poder aos grupos de se fizerem ouvir” (idem, p. 124). 
***. “Finalmente, já em meados do século XX, um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantia ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação na herança social. O exercício destes direitos é, ainda hoje, privilégio dos países já integrados ao sistema do welfare state” (idem, ibidem). 

Neoliberalismo e cidadania atrofiada

A grande crise econômica em que vivemos conduziu a certos retrocessos em matéria de conquistas sociais e políticas. O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que prega a abstenção estatal na área produtiva, atribui ao Estado capitalista uma grande cópia de poder sobre os indivíduos, a título de restaurar a saúde econômica e, assim, preservar o futuro. A alegação do que o grande desemprego é necessário para aumentar o emprego daqui a alguns anos é um desses argumentos consagrados para justificar uma recessão programada. Os “socialistas reais” também prometem, a partir das restrições atuais às liberdades clássicas, um sistema social em que, no futuro, a intervenção autônoma do Estado (separado da sociedade civil) será minimizada, se são abolida, na regulação da vida social.

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“Bolsa por 32 euros – comida de 1 semana por 4 euros”. O nosso atual modelo econômico altera a lógica de direitos das pessoas nas sociedades, tonando-as antes consumidoras do que cidadãs – portadoras de direitos sociais básicos. Foto: Gutewebung/ ONG Cordaid.

Um traço comum a esses países vem, todavia, do fato de que neles houve condição para que a luta histórica pela conquista dos direitos dos cidadãos abrangesse, ao longo do tempo, parcela considerável da população imbuída, consciente ou inconsciente, da ideia de sociedade civil e da vocação de igualdade. A instalação de tal estado de espírito e  de tal estado de coisas precede à implantação das grandes mudanças sociais que viriam comprometê-los: o papel da máquina e do industrialismo no intercâmbio social, o uso da astúcia ou da força nas relações internacionais, a chegada do capitalismo corporativo e a instrumentalização das relações interpessoais, a vitória do consumo como fim em si mesmo, a supressão da vida comunitária baseada na solidariedade social e sua superposição por sociedades competitivas que comandam a busca de statos e não mais de valores. Em tais sociedades corporativas, reina a propaganda como fazedora de símbolos, o consumismo como seu portador, a cultura de massas como caldo de cultura fabricado, a burocracia como instrumento e fonte de alienação.

Esse quadro, hoje comum a todos os países capitalistas, ganha ainda mais nitidez nos países  subdesenvolvidos como o nosso.

É necessário lembrar que, para muitos países do Terceiro Mundo, o empobrecimento da moralidade internacional atribuiu aos imperativos do progresso  a presença  de regimes fortes, as distorções na vida econômica e social, a supressão do debate sobre os direitos dos cidadãos, mesmo em suas formas mais brandas.

Deixaram de ser permitidos: a defesa do direito ao trabalho e a uma remuneração condigna, o reclamo dos bens vitais mínimos, o direito à informação generalizada, ao voto e, até mesmo, a salvaguarda da cultura.

O não-cidadão do Terceiro Mundo

Mas há cidadania e cidadania. Nos países subdesenvolvidos, de um modo geral, há cidadãos de classes diversas; há os que são mais cidadãos, os que são menos cidadãos e os que nem mesmo ainda o são. Para Tereza Haguette (1981-1982), o escopo da cidadania “não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites”*. Trata-se, devemos ressaltar, de escopo outorgado, estabelecido pelos que mandam, mas jamais de escopo finalístico a atingir. É certo que a cidadania  se realiza segundo diversas formas, mas não podemos partir do princípio de que homens livres possam ter respostas diferentes aos seus direitos essenciais apenas pelo fato de viverem em países diferentes. A própria autora, aliás, falando do estado de bem-estar (p. 124), critica o fato de que o exercício dos direitos correspondentes seja, ainda hoje, um privilégio de alguns países.

Nota: 
*. “[…] a cidadania, como subdesenvolvimento, está associada à divisão internacional do trabalho. Seu escopo não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites. Em uma economia mundial baseada em metrópoles politicamente fortes e satélites nacionais fracos, a cidadania – como a riqueza e o desenvolvimento econômico – é desigual e estratificada” (T. Haguette, 1981-1982, p. 125). 

A elaboração brasileira do não-cidadão

O caso brasileiro tem de ser analisado sob essa luz, na medida em que tais fatores, escalonados no tempo nos países do Norte, aqui aparecem e se implantam de uma só vez. A convergência de várias causas, ao mesmo tempo revolucionárias e dissolventes, iria ter um impacto fortemente negativo no processo de formação  da ideia de cidadania e da realidade do cidadão. Mas nesta, como em outras questões, há uma especialidade brasileira a realçar.

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Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é o instrumento da busca da ascensão social. Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário.

Em menos de trinta anos, isto é, no espaço de uma ou duas gerações, essas transformações se deram concomitantemente no Brasil, o que multiplicou exponencialmente o seu potencial já por si só negativo, sobretudo porque a classe média então criada já nascia debaixo das influências indicadas acima. Na realidade, tais mudanças perversas não apenas se deram paralelamente, mas sistematicamente, o que acentua a sua força ideológica, na medida em que os fenômenos correspondentes acabam por se justificar a partir de suas próprias relações causais, isto é, naturalmente. O quadro não está, certamente, completo.

Com certeza não saberíamos empreender a imensa lista de variáveis com valor explicativo, mas temos de acrescentar, pelo menos, mais duas, extremamente imbricadas com as demais. Uma é a imersão do país, desde praticamente o fim da Segunda Guerra Mundial, em um clima de guerra fria e o concomitante engajamento em uma política econômica subordinada à Aliança Atlântica. Essa causa é muito pouco mencionada quando se deseja equacionar a problemática nacional, mas realmente está presente na equação política internacional e interna, na condução da economia, na conformação da sociedade e na moral correspondentes, tanto quanto na configuração territorial.

O modelo econômico que conduziu ao chamado “milagre econômico” vai buscar suas raízes nos mesmos postulados  que levaram à supressão das liberdades civis, acusadas então como um fermento deletério, capaz de levar o país à anarquia. Trata-se, também, de um modelo político e social, responsável tanto pela eliminação do embrião de cidadania que então se desenvolvia, como pela opção de alargamento de uma nova classe média em detrimento da massa de pobres que o “milagre” não apenas deixou de suprimir, como também aumentou*. O crescimento econômico assim obtido, fundado em certos setores produtivos e baseado em certos lugares, veio a agravar a concentração da riqueza e as injustiças, já grandes, de sua distribuição. Entre as pessoas e entre os lugares. Como tal crescimento se fazia paralelamente ao apelo a um consumo impossível de se generalizar, as linhas de crédito abertas para fortalecer os produtores ajudaram a agravar as desigualdades e santificar as distorções. O equipamento do país, destinado ao escoamento mais frágil e mais rápido dos produtos, serviu, ao modelo econômico que o gerou, para a criação do modelo territorial correspondente: grandes e brutais migrações, muito mais migrações de consumo que de trabalho, esvaziamento demográfico em inúmeras regiões, concentração da população em crescimento em algumas poucas áreas, sobretudo urbanas, com a formação de grandes metrópoles em todas as regiões e a constituição de uma verdadeira megalópole do tipo brasileiro no Sudeste.

Além do que, para os seus moradores menos móveis, a cidade é impalpável. Ela, porém, impõe-se como um amontoado de signos aparentemente desencontrados, agindo, no entanto, em concerto, para limitar mais do que para facilitar a minha ação, tornando-me impotente diante da multiplicidade das coisas que me cercam e de que posso dispor**.

Notas:
*. “Não existe um livro chamado ‘O espírito das futuras leis brasileiras’, nem Montesquieu para escrever este livro. […] O texto não existe porque o espírito que buscamos necessita de uma conjuntura de ideias e instituições inéditas. 
E esse espírito tem de enquadrar um sistema de desenvolvimento acelerado com a redistribuição de renda e um Estado com sérias capacidades para manter o processo de desenvolvimento e redistribuição da renda ao mesmo tempo. Esse espírito exige instituições que possam manter a liberdade individual e a participação social e política” (Truber, 1981, pp. 151-152). 
**. A concentração urbana e, com ela, a diferenciação crescem mais depressa para a produtividade. É o fundamento da alienação urbana. Um equilíbrio neurótico termina, no entanto, por se estabelecer em benefício da ordem mais coerente da produção […]” (Baudrillard, 1970, p. 87). 

Uma sociedade multitudinária

Criava-se, assim, uma sociedade multitudinária – seria, já, uma sociedade de massas ou um seu arremedo? – sem o concomitante de um real consumo de massa, pois o poder aquisitivo faltava cruelmente a uma grande parcela dos novos urbanos. O consumo de massa é multiforme e abrangente. O que se deu no Brasil foi um consumo exclusivo que, mesmo para os estratos sociais beneficiados, mais se referiu a alguns bens materiais que ao conjunto de bens, a começar pelos bens imateriais, que facilitam o acesso a uma vida não apenas confortável, como, também mais digna*.

O consumo de massa esboçado valeu-se da mídia, em crescimento vertical, para impor gostos e preços. Esse trabalho de sedução foi facilitado pela própria atração que as novas mídias impuseram sobre o público**. Criadores da moda, difusores do crédito, o papel dos meios de  difusão deve ser realçado como o do colaborador privilegiado das artimanhas da produção de massas estilo brasileiro, uma produção de massas contente de si mesma e necessitada apenas de um mercado voluntariamente restringido. Isso garante o não-esgotamento da revolução das esperanças – isto é, das grandes esperanças de consumir -, e ajuda a colocar, como meta, não propriamente o indivíduo tornado cidadão, mas o indivíduo tornado consumidor.

Os efeitos daninhos dessa metamorfose ainda se farão sentir por muito tempo, e agora funcionam mais como um fator limitativo na elaboração de um projeto nacional mais consequente, já que os projetos projetos pessoais afloram e se exprimem com um vasto componente de alienação. É assim para a maioria da população, desprovida de meios para uma análise crítica de sua própria condição.

Também é ainda mais grave para os milhões de indivíduos que nasceram depois que tal processo se  iniciou ou que a ele se incorporaram sem poder distinguir aspirações pessoais legítimas e imposições do sistema econômico e político. Trata-se aqui daquela confusão entre liberdade e dominação, de que fala Marcuse quando se refere às condições de existência no mundo de hoje***.

A urbanização fundada no consumo é, também, a matriz de um combate entre a cultura popular que desertava as classes médias para ir se abrigar nos bairros pobres, cultura popular hoje defendida pelos pobres, cuja pobreza impede, afinal, sua completa imersão nessas novas formas de vida, fundadas pelo mesmo consumo que levou os pobres à cidade ou nesta fez pobres os que ainda não o eram.

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Imagem: Conexão Japão. 

Na cidade, sobretudo na grande, os cimentos se dissolvem e mínguam as solidariedades ancestrais. Ali onde o dinheiro se torna a medida de tudo, a economização da vida social impõe a competitividade e um selvagismo crescentes. As causas dos males aparecem como se fossem a sua solução, círculo vicioso que escancara as portas das favelas para a cultura de massas, com o seu cortejo de despersonalização, e a substituição dos projetos pessoais saídos da cultura, isto é, de dentro do indivíduo, por outros projetos elaborados de fora deste mesmo indivíduo, projetos decididos a conquistar todo mundo pela força da propaganda*¹. Assim, a cultura popular, cultura “selvagem” e irracional, é substituída, lenta ou rapidamente, pela cultura de massas; o espaço “selvagem” cede lugar a um espaço que enquadra e limita as expressões populares, e o que deveria surgir como sociedade de massas apenas se dá como sociedade alienada*².

Em lugar do cidadão surge o consumidor insatisfeito e, por isso, votado a permanecer consumidor.Sua dependência em relação aos novos objetos limita sua vocação para obter uma individualidade e reduz a possibilidade dos encontros interpessoais diretos e enriquecedores, porque simbólicos em sua própria origem. A comunicação entre as pessoas é frequentemente intermediada por coisas. Frequentemente os movimentos de massa também se esgotam nas coisas, tendo uma lógica mais instrumental que existencial*³. As mobilizações são locais ou setoriais. A socialização capitalista, originária de uma divisão de trabalho que a monetarização acentua, impede movimentos globais e um pensamento global. A reivindicação de uns não raro representa um agravo para o outro. A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.

Uma visão mais abrangente das coisas e dos fenômenos acaba por ser negada aos cidadãos comuns, em vista da concentração da mídia, da sobrecarga de informações irrelevantes**¹ e da tendência a apenas ampliar certos aspectos da realidade, cuja escolha para a exibição pública é, com frequência, ligada ao mundo da política e dos interesses. Lindbeck (1975, p. 35) já havia chamado a atenção para a dramatização que é feita sob “problemas específicos e concretos” que atraem e fixam a atenção sobre aspectos geralmente menores dos eventos. Quem olha a televisão com algum senso crítico já deve ter-se apercebido dessa forma de manipulação dos acontecimento.

Notas: 
*. Em uma de suas colaborações semanais à página 2 da Folha de S. Paulo, intitulada “Celso Furtado Revisitado”, Jarbas Passarinho comenta a impressão que obteve, há vinte anos, do livro “A Pré-Revolução Brasileira”, do renomado economista brasileiro. Celso Furtado já se referia ao dilema entre a liberdade e o desenvolvimento rápido, considerado como um falso dilema pelo comentarista atual. Na verdade, a contradição se deu entre um crescimento material acelerado pouco preocupado com a essência e a realização cultural da sociedade, oferecendo como resultado as cidadanias de segunda e terceira classe que caracterizavam a esmagadora maioria dos brasileiros. Cidadãos de primeira classe são os que se beneficiam desse crescimento econômico distorcido. 
**. “A deformação que se faz a respeito dos meios de comunicação eletrônicos decorre, portanto, da evidente deformação do significado do que eles efetivamente transmitem e de uma incompreensão a respeito da relação entre a aparência e a essência dos fenômenos no processo de conhecimento. Se a televisão e o rádio são ainda os únicos instrumentos que atingem as dezenas de milhões de brasileiros que mal manejam um lápis, que mal soletram o ABC, a papagaiada em torno do fim das barreiras culturais entre povos, a falência da escrita – e do jornalismo escrito – são criações de intelectuais que leram excessivamente e tiveram contato quase nenhum com as lutas políticas, econômicas, culturais e ideológicas práticas do povo brasileiro” (“Projeto de um Diário”, Retrato do Brasil, São Paulo, Política, 1984, p. 7). 
***. “Psicologicamente, e é só isso o que aqui nos preocupa, a diferença entre dominação e liberdade está se tornando menor. O indivíduo reproduz, em seu nível mais profundo, na sua estrutura de instintos, os valores e os padrões de comportamentos que servem menos para manter a dominação, enquanto a dominação se torna cada vez menos autônoma, menos ‘pessoal’, mais objetiva e mais universal. O que hoje domina é o aparelho econômico, político e cultural, que se tornou uma unidade indivisível construída pelo trabalho social” (Marcuse, 1970, p. 3). 
*¹. A propósito da forma como a imprensa escrita, falada e televisionada influi sobre a mente dos indivíduos, pode ser útil a leitura de um livro didaticamente redigido: “Mídia: O Segundo Deus”, de Tony Schwartz (1986). Um enfoque filosófico do tema é oferecido por Hans Magnus Enzensberger em “The Consciousness Industry…” (1974). 
*². “A mídia tende a focalizar mais as notícias ruins do que boas, a mostrar as aberrações em lugar do que é normal. É possível que, fazendo assim, esteja correspondendo ao gosto público. Mas o resultado […]” (Rybczynski, 1985, p. 27). 
*³. “O poder social é, hoje, mais que nunca, mediado pelo poder das coisas. Quanto mais intensa a implicação do homem com as coisas, e mais as coisas o dominam e mais lhe faltam aqueles traços individuais genuínos e mais sua mente será transformada em um autômato da razão formalizada” (Horkheimer, 1974, pp. 129-130). 
**¹. “Esse estado de superinformação perpétua e de subinformação crônica caracteriza nossas sociedades contemporâneas. 
O imediato torna, de fato, a decifração de um acontecimento ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil. Mais fácil porque choca de imediato, mais difícil porque se manifesta totalmente de imediato. Num sistema de informações mais tradicional, o acontecimento assinala por seu próprio conteúdo sua área de difusão. Sua rede de influências era, cada vez mais, definida por aqueles aos quais tocava. Seu traço  era mais linear […] estando doravante cortados os intermediários, opera-se uma telescopagem, e na incandescência das significações ficamos cegos” (Nora, 1976, p. 189). 

Imagens: Lucas Rocha

Referência: 

SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo, Edusp: 2007.

Da cidade industrial à cidade dos consumidores: reflexões teóricas para debater

Por Carles Carreras¹

 

Com mais de trinta anos de docência universitária, da qual a maior parte foi dedicada à geografia urbana, a interpretação teórica da cidade continua apresentando alguns problemas, especialmente quando se parte unicamente das contribuições produzidas no campo da disciplina geográfica. Das aplicações excessivamente baseadas em manuais de contribuições relativamente tardias da Geografia francesa*, especialmente de Raoul Blanchard (1922)**, Georges Chabot (1948) e Jacqueline Beaujeu-Garnier (1980), divulgadas especialmente por Pierre George (1961) e que, em certa forma, seriam aprofundadas por Milton Santos em sua primeira etapa e para as cidades do subdesenvolvimento (1973), passou-se às influências da filosofia de Henri Lefebvre (1986) e à da sua crítica sociológica, a cargo do primeiro livro de Manuel Castells (1972), cuja evolução teórica posterior foi tão fecunda***. Paralelamente há que se destacar a relativa permanência das explicações da escola clássica de Chicago, apesar das críticas teóricas básicas realizadas desde enfoques tanto marxistas como neopositivistas; o vigor do enfoque e a clareza do modelo se mantiveram e inclusive ampliaram-se, com a aparição de novos movimentos sociais na cidade, desde os movimentos de vizinhanças dos anos 1970 (Castells, 1973) até os chamados gentrificadores da década posterior (Smith e Williams, 1986).

Junto a essa trajetória docente, a experiência urbana e as investigações empíricas conseguiram complicar ainda mais qualquer aproximação extremamente esquemática da interpretação e do conhecimento da cidade. Do infrutuoso acúmulo de rupturas teóricas passou-se a uma certa recuperação das tradições explicativas diversas, que poderia chamar-se de uma continuidade flexível (Parker, 2004), com especial ênfase no uso das técnicas qualitativas para a construção e interpretação da informação. Junto a isto, que pode ser rotulado de ecletismo, há que destacar o reconhecimento do aporte teórico tão notável de David Harvey (2003a) e, embora menor, não menos estimulante o de Edward Soja (2000), únicos geógrafos citados e lidos amplamente fora da própria comunidade científica.

Dada a complexidade do fenômeno urbano e frente à sistematização dos diversos problemas que se questionam nas tentativas de definição e explicação da cidade, esses se agruparam em quatro campos diferentes que intervêm significativamente na explicação da dinâmica das cidades contemporâneas. Em cada um destes campos se questionam problemas de natureza diferente, para alguns dos quais se encontram respostas teóricas, enquanto para outros foram lançadas unicamente hipóteses. Como opção teórica pessoal, devemos sinalizar que estes campos estão sempre relacionados com o fator mudança, o que não deixa de significar a aplicação de certa comparação entre um antes e um depois*¹.

Neste capítulo*² apresentam-se a seguir esses quatros campos, como o enunciado dos principais problemas e suas possíveis soluções, quando existem. A ordem em que estes campos são apresentados é aleatória e, em nenhum caso, pretende ser casual. Seguidamente se formulam umas primeiras conclusões teóricas gerais, talvez com mais problemas – uns velhos e outros novos – que soluções.

Notas:
*. A primeira bibliografia anglo-saxã também não sobrepassava este nível manualístico, apesar de incorporar outros enfoques (Taylor, 1949 ou Dickinson, 1952).
**. É interessante notar que o método de Blanchard foi rapidamente traduzido ao catalão no boletim do centro excursionista da Catalunha e que alcançou  uma grande difusão como guia de estudos locais de aficionados. 
***. Deste período são as primeiras publicações de investigações urbanas (Carreras, 1974 e 1980).
*¹. Deseja-se destacar aqui esta vertente comparativa dentro de um projeto que, de alguma maneira, compara duas cidades como Barcelona e São Paulo, mesmo que isso não signifique a adesão a nenhum “método” comparativo como tal.
*². Uma primeira versão deste capítulo foi apresentada no seminário organizado para este efeito no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo em dezembro de 2002. Esta disposição de apresentação de seminário entre colegas explica o estilo sintético do texto que não detalha o que pode ser encontrado na bibliografia citada e dá-se por sabido.

As mudanças no sistema produtivo

Sem pretender realizar uma descrição com rigor histórico da análise das mudanças no sistema produtivo, somente se pretende aqui separar algumas variáveis fundamentais para a explicação da dinâmica econômica contemporânea. Assim, a deslocalização industrial, por um lado, a expansão e o crescimento das mal chamadas empresas multinacionais, por outro, introduzem claramente a lógica da globalização*. O mundo, e inclusive hoje quase o espaço cósmico e os planetas acessíveis, constituem o único âmbito normal para a tomada de decisões de qualquer um dos agentes econômicos, independentemente de sua dimensão e importância, mesmo que regidos especialmente pela hegemonia do capital financeiro. O auge das bolsas, de algumas bolsas ao menos**, e a possibilidade do investimento constante, tanto no presente como no futuro, e em qualquer lugar e a partir  de qualquer lugar, veio para romper de alguma forma as lógicas espaço-temporais do capitalismo industrial. David Harvey explicou essas mudanças definindo uma nova fase na evolução do capitalismo e a chama de acumulação por espoliação diante da fase de reprodução expandida anterior, a partir de suas interessantes tentativas de explicação da guerra contra o Iraque (Harvey, 2003b).

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As bolsas de valores como representação da atual fase do capitalismo denominada por Harvey como “acumulação por espoliação”. Imagem: Na Ponta do Lápis. 

Produziu-se também com isso uma progressiva fragmentação dos processos produtivos e do trabalho, em geral, desenvolvendo-se enormemente a chamada subcontratação, que dá novo sentido à terceirização (como intervenção de terceiros, que podem ser inumeráveis e criam redes e empresas de novo tipo, muito diversificadas). Ao mesmo tempo foi se produzindo uma tendência à personalização da demanda que condiciona progressivamente a produção, frente a tradicional produção em massa das cadeias de montagem, o que pode supor uma mudança de escala e explica que esse processo tenha sido denominado pós-fordista, enfatizando somente os aspectos técnicos destas mudanças. De qualquer maneira, deve-se ressaltar que se formularam outras explicações, como a chamada teoria da regulação (Boyer, 1987) ou da desorganização do capitalismo (Lash e Urry, 1987), ambas centradas em destacar a flexibilização que vem se produzindo em todos os âmbitos. Por outro lado, finalmente, se enfatizou a formação de uma sociedade organizada em redes e baseada essencialmente na informação, que inclui uma explicação mais ampla e complexa da dinâmica econômica do mundo contemporâneo (Castells, 1996).

Dentro desse contexto geral, que é necessário continuar estudando e debatendo, já se trabalhou pessoalmente na perspectiva de privilegiar o papel do consumo como novo reorganizador de todo o sistema produtivo, das dinâmicas sociais e da produção (e consumo) da cidade e do território. Novamente, neste aspecto deve-se questionar uma certa orfandade teórica, ao menos dentro da disciplina da Geografia, em geral, com a obsolescência relativa das obras que foram fundamentais na década de 1970, que não levaram a contemplar esta perspectiva do consumo mais do que como demanda necessária aos interesses da produção ou do consumo coletivo imprescindível na chamada reprodução da força de trabalho. Há que sinalizar, logicamente, exceções importantes especialmente no ramo da Antropologia cultural e nos estudos culturais, em geral, com autores como Néstor García Canclini (1995), para a América Latina, ou Jameson (1984), Appaduraj (1986), McCraken (1990) ou Miller (1995), para o mundo anglo-saxão***.

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Foto: Raoni Barbosa.

 O consumo de bens, produtos e de serviços, de tempos e de espaços deve-se configurar como a variável explicativa fundamental da sociedade contemporânea, com o desenho de uma nova cultura que se debate entre o local e o global, e com impactos decisivos no social e no econômico, administrada apenas por um sistema político mais rígido do que poderia se esperar *¹. Esta nova configuração deve levar a uma reclassificação das atividades econômicas e a uma reflexão sobre o papel predominante da distribuição e da gestão. Neste sentido, e por causa da maior facilidade na obtenção dos dados econômicos, grande parte da investigação pessoal se centralizou no estudo das estruturas comerciais urbanas, mesmo que com um sentido amplo de comércio, o que inclui grande parte dos serviços que têm contato direto com o público (Carreras et al., 1990, 2001 e 2003). No trabalho de campo, nas entrevistas e nas pesquisas realizadas durante as investigações centralizadas no caso de Barcelona essencialmente (com análise comparativa com Madri, Lisboa e Toulouse e, ainda que menos, com São Paulo) foram alcançados alguns resultados sobre o consumo em si mesmo, embora sem alcançar ainda uma explicação demasiado completa (Carreras, 1999).

Notas:
*. Defende-se aqui o termo anglo-saxão de globalização, diante ao de mundialização dos franceses, dado ao significado absolutamente diferente e estrutural da nova organização mundial em uma sociedade da informação (Castells, 1996).
**. É curioso indicar como a chamada cidade global de Saskia Sassen coincide muito automaticamente talvez com a sede das três principais bolsas do mundo que constituem a referência para todas as demais: Nova York, Londres e Tóquio.
***. Cabe destacar, já neste sentido, a tradução ao português de parte da obra do antropólogo britânico Don Slater (Slater, 2001).
*¹. Faz-se referência aqui à pervivência do papel do Estado além do que era dado a se pensar. 

As mudanças na sociedade

No nível social há que se registrar também uma mudança fundamental que se mostra especialmente nas dinâmicas de fragmentação da família, como unidade tradicional de agrupação entre a sociedade e o indivíduo, culminando assim na realidade, nas mudanças iniciadas no nível teórico durante o século das Luzes. A reprodução do tamanho da família, assim, levou à multiplicação das famílias unipessoais, individualizando as unidades de consumo urbano. O próprio perfil do indivíduo também foi analisado em sua complexidade e dinâmica, levando à definição de uma sociedade de indivíduos que podem desenvolver papeis diferentes em momentos e lugares distintos (Elias, 1987).

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Parada do Orgulho LGBT de São Paulo 2015 – manifetação por direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Foto: Amauri Nehn/ Estadão Conteúdo/ UOL Notícias

Novos conflitos sociais tornam aparentes essas mudanças, especialmente no que se refere a alguns temas. Uns ligados ao gênero, com o aumento da violência doméstica, mantendo as lutas pela igualdade entre homens e mulheres e pelos direitos de gays e lésbicas. Outros relacionados com a crescente marginalização dos jovens, a formação das chamadas tribos urbanas, e a dos velhos e sua nova exploração. Outros, finalmente, relacionados com as novas migrações, cada vez com maiores itinerários e uma pluralidade cultural maior, favorecidas pela relativa flexibilização e mudanças das fronteiras políticas tradicionais.

De qualquer maneira, há que se sinalizar que os novos grupos sociais surgidos em torno dessas mudanças (que alguns acham que não são tão novas) se superpõem, sem eliminar nem desmentir, a divisão geral da sociedade urbana em classes, embora já não seja com uma base exclusivamente econômica. Por causa da importância que as mudanças culturais diversas nas diferentes culturas tem, a mestiçagem, a hibridação e a multiculturalidade aparecem como soluções básicas, mesmo que de difícil aplicação, para esse novo conflitismo social.

Do ponto de vista da investigação, a Geografia humana tende a desenvolver estudos sociais muitas vezes como análise demográfica, somente. Isso supõe, por um lado, o predomínio das aproximações puramente quantificadoras, ficando o social como uma explicação fragmentada e pontual. Por outro, isso supõe também forte dependência a respeito das fontes estatísticas oficiais em busca da exaustão dos universos estudados, utilizando muito escassamente as aproximações qualitativas, as sondagens e as tendências. Assim, entroncam-se como o velho debate sobre a variável independente, que logicamente não existe, e que deveria levar a enfocar a Geografia social, em grande parte, como uma Geografia cultural.

As mudanças no tempo

Neste caso, logicamente, não se trata tanto de que o tempo tenha mudado por si mesmo, mas que mudam sua concepção e sua experiência. A vivência do tempo, dos tempos na cidade, também está mudando de forma significativa, como consequência da flexibilização dos horários de trabalho e do aumento da rapidez das comunicações de todos os tipos. Milton Santos (1996) destacou já nos anos 1990 a importância da diferença dos ritmos do tempo vivido por diferentes pessoas e grupos sociais, definindo um tempo rápido e um tempo lento como extremos de diferentes possibilidades de vivenciar os tempos na cidade. Essas mudanças de vivência dos tempos têm uma influência especialmente marcada na progressiva desregulamentação do calendário e dos horários laborais. A conformação de uma sociedade de consumidores está condicionando basicamente essas mudanças com a alteração e alongamentos das temporadas turísticas e dos horários comerciais, por exemplo, elementos que geram grande confrontação e debate entre os diversos agentes sociais. O avanço progressivo da aposentadoria e a redução da jornada de trabalho em alguns países, assim como o aumento da greve em quase todos, levaria também ao desenvolvimento da chamada sociedade do ócio, mais que do trabalho. Mas, por outro lado, há que se frisar também que, ao mesmo tempo, aumentaram as empresas de todos os tipos que prestam seus serviços 24 horas.

Da mesma forma registraram-se mudanças importantes na idade em que as pessoas decidem fazer ou podem fazer determinadas coisas. Depois aumento constante, mesmo que desigual, da esperança de vida, da progressiva diminuição da maioridade, atrasa-se ou avança-se, de acordo com as circunstâncias, a entrada e a saída no mercado de trabalho, se atrasa a idade do matrimônio ou da formação  de um núcleo familiar e especialmente a idade da concepção do primeiro filho. Este último fato, que tem claras consequências na diminuição das taxas de fecundidade, contrasta com os grandes avanços de técnicas de fertilização humana e dos hábitos de adoção de crianças em uma escala internacional, que permitiria aumentar enormemente essas taxas.

Como uma das consequências sociais mais importantes que geram essas mudanças nos tempos vividos, cabe destacar que se produziram também uma flexibilização e novas dinâmicas na realização dos papeis sociais tradicionais dos indivíduos. Neste sentido aparece na sociedade dos consumidores cada vez mais um certo esfumaçamento das fronteiras tradicionais entre o feminino e o masculino, ou entre a juventude e a velhice, entre ricos e pobres, o que permite gerar novas possibilidades de estudo e novos conflitos sociais.

As mudanças no espaço

Como é lógico, todo esse conjunto de mudanças, que se reproduzem em ritmos e momentos diferentes, provocam uma série de novas mudanças e novas dinâmicas no território. No campo da planificação territorial, especialmente, urbana, com a crise do “zoning” que vinha consolidar a ordem “fordista”, que predicava uma coisa em cada lugar, um lugar para cada coisa, e propunha a divisão das 24 horas em três blocos separados; a inclusão da dinâmica das mudanças econômicas, sociais e temporais e a consequência  de tal flexibilização deixaram sem aplicação o zoneamento unifuncional dos distintos fragmentos do mosaico urbano. A partir daqui, as administrações locais tiveram de entrar em uma série contínua de mudanças nas qualificações do planejamento já aprovado, ao mesmo tempo que os novos planejamentos se fazem mais formais e morfológicos e, sobretudo, pontuais, ou se convertem em estratégicos de corte empresarial.

Uma das manifestações importantes deste relativo relaxamento do planejamento (Cervellatti, 1984) foi a reconsideração da densificação urbana, que passou a ser combatida a ser progressivamente valorizada, com argumentos tanto meio ambientais como culturais*. Outras manifestações se referem à reabilitação do patrimônio urbano, para a conservação da memória cidadã e, também, como geração de uma imagem de marca para a valorização turística da cidade no mercado internacional; isso se manifestou em uma grande multiplicação de políticas e renovação dos bairros centrais, que coincide com a difusão da chamada gentrificação (Smith e Williams, 1986). A eclosão do movimento cultural que se autodenominou pós-moderno (Habermas, 1988) deu base teórica a muitas dessas políticas de reabilitação, introduzindo modelos de novo ecletismo artístico e temporal e criando a possibilidade de escolherem vários cenários diferentes por parte dos cidadãos e dos administradores da cidade.

Berrini
São Paulo global – Ponte Estaiada e a região da Avenida Luis Carlos Berrini atrás. A imagem de uma metrópole globalizada, moderna e competitiva diante do mercado internacional.  

A crescente importância do consumo do espaço urbano colocou no primeiro plano das políticas de muitas cidades um interesse especial pela paisagem urbana em relação com o desenvolvimento da chamada sociedade do espetáculo (Debord, 1992), e da cultura da imagem. O papel dos arquitetos** e de outros técnicos foi assim magnificado e a contratação de suas obras em uma escala internacional concretizou boa parte da homogeneização de muitos espaços urbanos que se considera vinculada com exagero ao desenvolvimento  da globalização. As cidades investem crescentemente na fixação de uma imagem competitiva no mercado internacional com o fim de atrair todo o tipo de investimentos produtivos, imobiliários, turísticos ou de qualquer outro tipo.

Estas mudanças, junto ao crescimento contínuo das cidades em uma escala mundial e a multiplicação das metrópoles, apresentam cada vez mais o problema da compreensão da cidade como uma totalidade e suas dificuldades. Contrapõe-se assim a concepção holística da cidade por parte dos analistas, científicos, técnicos e políticos urbanos à fragmentação vivida pela maioria dos cidadãos em seus itinerários cotidianos. Essa contraposição acarreta como uma de suas consequências perversas um distanciamento e uma incompreensão  progressiva dos cidadãos a respeito da administração urbana que deve ter algumas consequências na crise geral do sistema produtivo democrático na época contemporânea.

Notas:
*. Isto, ao menos, se produz em algumas cidades europeias, especialmente nos estudos metropolitanos da cidade de Barcelona.
**. O papel predominante dos arquitetos foi denunciado em Barcelona nos últimos anos (Moix, 19), cuja influência se estendeu a outras cidades em escala internacional com a criação do chamado modelo Barcelona, que necessita de uma revisão crítica em profundidade (Carreras, 1995).

 Mudanças e continuidade na cidade

Como conclusão devem-se frisar alguns pontos gerais já que é sabido que a dialética constante entre a mudança e a continuidade em Geografia resulta com frequência em uma simples consequência metodológica da escolha da escala do estudo. Os estudos de grande escala, tanto territorial como temporal, acentuam a visibilidade das mudanças e da diversidade, além de dificultarem a classificação e explicação dos fatos estudados. Contrariamente, os estudos realizados em pequena escala levam a destacar as continuidades e as permanências, as regularidades e a homogeneidade. Por isso, é imprescindível tentar realizar qualquer estudo aplicando a análise multiescalar clássica na Geografia (Lacoste, 1977) que busque explicar a complexidade.

Igualmente, há que se ter sempre em conta que as mudanças, por mais importantes que sejam, não acabam automaticamente com o anterior, nem no mesmo momento, e que quase nunca totalmente. Cada território apresenta umas inércias e umas resistências particulares à introdução das inovações e mudanças, o que permite certa revalorização das aproximações clássicas dos processos de difusão do geógrafo sueco Törsten Häggerstrand, incluindo sua posterior evolução da quantificação matemática à quantificação subjetiva. A particular articulação de resistências e inovações pode construir a essência do local e explicaria suas conexões com o global. Na cidade este fato é especialmente importante, o que levou sua consideração como palimpsesto, efeito ampliado pelas apropriações e representações diferentes que são feitas por cada cidadão. Do mesmo modo, as mudanças, todas elas, de qualquer tipo, não podem ser isoladas dos momentos em que se produzem, com o fim de documentar e contextualizar os processos, suas causas e seus ritmos. Este fato obriga a manter as tradicionais relações entre a Geografia e a História, mesmo que baseada em novos parâmetros de colaboração. Recorrer ao rigor histórico não deve ser confundido com ser historicista.

Esse mesmo fato de não considerar a inovação como anuladora do anterior deve ser aplicado especialmente ao corpo da teoria; pensar que uma nova explicação anula ou supera as anteriores não deixa de significar uma concepção “desenvolvista” de base biológica da evolução do pensamento, muito arraigada nos anos 1960 que deveria ser totalmente descartada. Cada teoria, cada hipótese mantém algum valor explicativo, mais ou menos importante e complexo, aplicável em algum lugar e talvez não em outros, que deve ser por isso contextualizado e analisado para sua posterior incorporação à explicação geral e complexa de fenômenos sociais, como a cidade e o urbano. 

Dentro deste contexto geral cabe se perguntar, seguidamente, o que permanece da explicação da cidade industrial, que analisou a Geografia clássica em seus diversos enfoques. Parece evidente que ainda permanecem os principais mecanismos do mercado do solo e a combinação de estratégias dos diversos agentes da produção do espaço urbano, assim como as bases essenciais da divisão da sociedade em classes. De qualquer maneira, essa evidência não pode anular a visibilidade das mudanças importantes que se produzem na reprodução dos mecanismos de poder que têm claras consequências sobre os anteriores.

Neste sentido, e em primeiro lugar, deve-se enfatizar os efeitos da internacionalização do mercado e do consumo; inclusive do mercado do solo urbano que tradicionalmente se havia mantido no âmbito local ou regional ou, como máximo, nacional, no caso das capitais e das grandes cidades, e hoje se ampliou a um mercado global. As contradições entre o local e o global aparecem assim como um dos temas de estudos mais relevantes  nas grande metrópoles e na maior parte das cidades e territórios, levando à necessidade de investigação das estratégias das companhias imobiliárias internacionais e da concorrência entre cidades, com temas-chave como as bases teóricas  do chamado modelo Barcelona, que deve ser discutido com rigor em sua criação e em suas aplicações tão diversas.

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Centro moderno e globalizado de Barcelona, Espanha. 

Por outro lado, em segundo lugar e no nível teórico cabe se perguntar sobre a vigência atual do próprio conceito de cidade e dos outros conceitos que aparecem ligados a este como: metrópole ou bairro, centro ou periferia. Não está claro que a mesma palavra deva servir para denominar realidades que podem chegar a ser muito diferentes, tanto a escala histórica (de Jericó a Brasília, como apontava Paul Bayroch em  1985) como a escala mundial contemporânea (de Nova York ao Cairo ou Xangai). Edward Soja desenvolveu as intuitivas hipóteses de Jane Jacobs dos anos 1960, aplicando o conceito de contiguidade criativa para explicar a essência e a permanência do urbano através das civilizações, do tempo e do espaço (Soja, 2000). Sem necessidade talvez de novas palavras, a cidade continua sendo um conceito geográfico por excelência, já que permite incluir os aspectos físicos e morfológicos, assim como os sociais, econômicos, políticos e culturais que constituem a complexidade dinâmica da sociedade urbana.

Os diferentes tempos com que se vive a cidade estabelecem a questão de quem pode contemplar hoje a totalidade de cada cidade, especialmente nas grande metrópoles. A vida cotidiana da maioria dos cidadãos transcorre em itinerários relativamente limitados e repetidos, o que impede a compreensão da cidade com um todo; apenas uma minoria de cidadãos tem um âmbito maior, dentro e fora da cidade, e consegue uma visão mais totalizante; assim como os visitantes e turistas cujo desconhecimento facilita a confecção de uma ideia geral e generalizante. Entre essas visões totalizadora e generalizadoras destaca-se a dos políticos, administradores e técnicos e suas consequências sobre a crise atual dos princípios do sistema democrático. Mas, deve-se destacar também, o papel dos estudiosos, especialmente neste caso, dos geógrafos urbanos que elaboramos a análise e a síntese que, com maior ou menor êxito, se difundem sobre nossas cidades. Isso se deve levar ao aprofundamento da reflexão sobre o papel do próprio investigador na simulação e na dissimulação da realidade estudada e acabar com a simplificação de usar a cidade como um sujeito coletivo.

Finalmente, a importância crescente de variáveis ligadas à cultura, em seus sentidos mais amplos, deve ajudar a reforçar os estudos das culturas urbanas. As mudanças culturais produzidas pela globalização da sociedade, da informação e dos consumidores constituem um dos elementos mais significativos da vida cotidiana e da organização da vida social urbana. Ainda assim, deve-se reavaliar os processos de formação das identidades em diferentes grupos sociais em cada cidade e suas consequências sobre a convivência. Tudo isso aponta, sobretudo a partir dos estudos do antropólogo argentino Néstor García Canclini, ao fenômeno da hibridação e da multiculturalidade.

¹. Carles Carreras – Professor da Universidade de Barcelona

Organização das imagens: Lucas Rocha

Referência:

CARLOS, Ana Fani; CARRERAS, Carles (Orgs.). Urbanização e mundialização: estudos sobre a metrópole. São Paulo: Editora Contexto,  2005.

“Cartas Urbanas”, uma websérie geocrítica

Por Lucas Rocha

 

O Observatório das Metrópoles divulgou recentemente a websérie “Cartas Urbanas”, que conta narrativas acerca do direito à cidade a partir do ponto de vista de moradores de diferentes partes da periferia de Fortaleza, no Ceará, cuja proposta centra-se em uma crítica social e territorial.

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Websérie sobre o direito à cidade: “Cartas Urbanas”. Imagem: Reprodução – “Cartas Urbanas”.

Segundo a nota de divulgação, os três primeiros episódios retratam as comunidades de Trilhos, o Grande Bom Jardim e Serviluz, na capital cearense. Cada episódio tem duração de 13 minutos e a websérie foi produzida pelo Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (LEHAB/UFC) e pela produtora Nigéria. Esta websérie é um dos resultados de um projeto maior que integra a Rede Nacional INCT Observatório das Metrópoles por meio do projeto “Planejamento urbano e direitos humanos no Brasil: implementação do direito à moradia e à cidade”, com patrocínio da Fundação Ford.

A série retrata a resistência de algumas comunidades em permanecer em suas localidades, onde a força do capital imobiliário formula um campo de forças pelo uso do território, resultando assim na formação de uma frente organizada de luta popular e direito à cidade por movimentos sociais.

“Cartas Urbanas” tem já disponível três episódios: “Comunidade em Ruínas”, “Fronteira Esquecida” e “Paraíso Segregado”. Todos estão disponíveis para assistir no endereço: Cartas Urbanas no Vimeo

Para maiores informações, acesse o site do Observatório das Metrópoles.

Fonte:

 “Cartas Urbanas: websérie sobre direito à cidade”. Observatório das Metrópoles.