Por Milton Santos
Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que não o são? O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se de um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna.
O discurso das liberdades humanas e dos direitos seus garantidores é, certamente, ainda mais vasto. Tantas vezes proclamando e repetido, tantas vezes menosprezado. É isso, justamente, o que faz a diferença entre a retórica e o fato. O respeito ao indivíduo é a consagração da cidadania, pela qual uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo de direitos concretos individualizados. A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância.
A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna um estado de espírito, enraizado na cultura. É, talvez, nesse sentido, que se costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista, uma conquista a se manter. Ameaçada por um cotidiano implacável, não basta à cidadania ser um estado de espírito ou uma declaração de intenções. Ela tem o seu corpo e os seus limites como uma situação social, jurídica e política. Para ser mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis, mediante dispositivos institucionais que assegurem a fruição das prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito de reclamar e ser ouvido.
A cidadania pode começar por definições abstratas, cabíveis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válida deve poder ser reclamada. A metamorfose dessa liberdade teórica em direito positivo depende de condições concretas, como a natureza do Estado e do regime, o tipo de sociedade estabelecida e o grau de pugnacidade que vem da consciência possível dentro da sociedade civil em movimento. É por isso que, desse ponto de vista, a situação dos indivíduos não é imutável, está sujeita a retrocessos e avanços. Os homens, pela sua própria essência, buscam a liberdade. Não a procuram com a mesma determinação porque o seu grau de entendimento do mundo não é o mesmo. As sociedades, pela sua própria história, são mais ou menos abertas às conquistas do homem.
E os Estados nem sempre coincidem com a sociedade civil, mas, ao contrário, refreiam-lhe os impulsos, e frequentemente desrespeitam os indivíduos, sob as justificativas e disfarces mais diversos. A dialética da vida social leva em conta o movimento desses fatores: o dado institucional, o dado econômico, o dado cultural e o dado individual interdependem e interagem.
F. C. Weffort (1981, pp. 139-140) mostra como, no seu clássico Citizenship and Social Class, Marshall reconheceu no interior das democracias modernas a existência de uma tensão permanente, uma “guerra”, diz ele em determinado momento, entre o princípio de igualdade implícito no conceito de cidadania e a desigualdade inerente ao sistema capitalista e à sociedade de classes (Marshall, 1965m p. 92).
Países com tradição de cidadania e outros não?
A cidadania evolui por meio de um processo de lutas e desenvolvidas paralelamente em diversos países, que leva da condição de “membro da sociedade nacional” no século XVII*, ao “direito de associação” no século XIX**, até serem alcançados os “direitos sociais” em pleno século XX***. Em um belo ensaio, Tereza Haguette (1981-1982) descreve a evolução que começa com a aquisição do status de cidadão, membro de uma sociedade civil reconhecida como tal, isto é, a conquista de direitos políticos individuais, prossegue com o reconhecimento de direitos coletivos, pertinentes aos grupos que constituem a coletividade nacional e autorizados a formar associações representativas legitimadas, até aqui “um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantiriam ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação na herança social”.
A própria palavra cidadão vai se impor com a grande mutação histórica marcada na Europa com a abolição do feudalismo e o início do capitalismo. Marx e tantos outros autores saudaram a chegada do capitalismo com a abolição de vínculos de servidão entre o dono da terra e “seu” trabalhador, e o surgimento do trabalhador livre, dono dos meios de produção. As aglomerações humanas, os burgos, foram o teatro principal dessa luta e o palco dessa enorme conquista. Com o homem do burgo, o burguês, nascia o cidadão, o homem do trabalho livre, vivendo num lugar livre, a cidade.
Assim, com a passagem do feudalismo para o capitalismo, a do trabalho servil para o trabalho livre não se deu de uma noite para o dia. O processo de formação da cidadania não foi tão brutal como equivocadamente podem pensar os observadores longínquos da história, considerando os eventos como se fossem um ponto fixo no tempo. As relações sociais feudais e a forma de trabalho correspondente geraram, lentamente, um novo caldo de cultura, assentando as bases de um pensamento revolucionário e de sua expansão, oferecendo à rebeldia os fundamentos de um êxito que iria desembocar em novas relações sociais e de trabalho.
As conquistas cidadãs não ficaram aí. A prática dessa porção de liberdade adquirida foi o aprendizado para novas liberdades, até que se chegasse às ideias modernas de sociedade civil, um corpo social que só existe porque há homens ciosos dos seus direitos; e existe a despeito do Estado. Não fora assim e o ideário liberal não se teria alastrado na Europa e, dela, não se teria transferido para outros continentes. É assim que esse projeto chega aos Estados Unidos, fazendo desse país seu principal bastião.
O fato, porém, é que não é lícito confundir o liberalismo de Tocqueville ou o cidadão da era do capitalismo concorrencial com o cidadão da era teletrônica. Impõe-se a necessidade de atualização do conceito e do instituto correspondente.
Em diversos países – e isso em maior ou menor grau -, o ideário da cidadania e a legislação correspondente foram se adaptando. A herança cultural, as novas ideias políticas, as novas realidades do mundo do trabalho, as novas definições do intercâmbio social foram os fermentos dessa mudança. As revoluções socialistas, desejosas de romper com as relações sociais impostas pelo capitalismo e de reconhecer os direitos das massas, tiveram, também, um papel dialético nessa transformação, ainda que críticos atuais do que chamam o “socialismo real” protestem contra a ausência de conteúdo liberal na promoção social empreendida no leste.
Notas:
*. “Com relação ao conceito de cidadania […] uma rápida incursão histórica nos mostra que, no século XIX, com a emergência do Estado-nação em toda a Europa, este conceito adquiriu um importante elemento: a qualidade de membro. Pelo simples fato de ser membro de um Estado-nação, todos os habitantes ascendiam ao status de cidadão, apesar de que o mais elevado direito do cidadão, o direito político de participar da construção da sociedade, se efetivaria somente através do voto. Até um passado bem recente – início do século XX – este direito era reservado a alguns […]” (T. Haguette, 1981-1982, p. 123).
**. “No século XIX, o direito de associação – que representa um importante direito político – foi incorporado ao status da cidadania, proporcionando as bases para a classe trabalhadora adquirir direito político. Em outras palavras, enquanto os direitos civis eram essencialmente individuais, o direito de assiciação deu poder aos grupos de se fizerem ouvir” (idem, p. 124).
***. “Finalmente, já em meados do século XX, um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantia ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação na herança social. O exercício destes direitos é, ainda hoje, privilégio dos países já integrados ao sistema do welfare state” (idem, ibidem).
Neoliberalismo e cidadania atrofiada
A grande crise econômica em que vivemos conduziu a certos retrocessos em matéria de conquistas sociais e políticas. O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que prega a abstenção estatal na área produtiva, atribui ao Estado capitalista uma grande cópia de poder sobre os indivíduos, a título de restaurar a saúde econômica e, assim, preservar o futuro. A alegação do que o grande desemprego é necessário para aumentar o emprego daqui a alguns anos é um desses argumentos consagrados para justificar uma recessão programada. Os “socialistas reais” também prometem, a partir das restrições atuais às liberdades clássicas, um sistema social em que, no futuro, a intervenção autônoma do Estado (separado da sociedade civil) será minimizada, se são abolida, na regulação da vida social.
Um traço comum a esses países vem, todavia, do fato de que neles houve condição para que a luta histórica pela conquista dos direitos dos cidadãos abrangesse, ao longo do tempo, parcela considerável da população imbuída, consciente ou inconsciente, da ideia de sociedade civil e da vocação de igualdade. A instalação de tal estado de espírito e de tal estado de coisas precede à implantação das grandes mudanças sociais que viriam comprometê-los: o papel da máquina e do industrialismo no intercâmbio social, o uso da astúcia ou da força nas relações internacionais, a chegada do capitalismo corporativo e a instrumentalização das relações interpessoais, a vitória do consumo como fim em si mesmo, a supressão da vida comunitária baseada na solidariedade social e sua superposição por sociedades competitivas que comandam a busca de statos e não mais de valores. Em tais sociedades corporativas, reina a propaganda como fazedora de símbolos, o consumismo como seu portador, a cultura de massas como caldo de cultura fabricado, a burocracia como instrumento e fonte de alienação.
Esse quadro, hoje comum a todos os países capitalistas, ganha ainda mais nitidez nos países subdesenvolvidos como o nosso.
É necessário lembrar que, para muitos países do Terceiro Mundo, o empobrecimento da moralidade internacional atribuiu aos imperativos do progresso a presença de regimes fortes, as distorções na vida econômica e social, a supressão do debate sobre os direitos dos cidadãos, mesmo em suas formas mais brandas.
Deixaram de ser permitidos: a defesa do direito ao trabalho e a uma remuneração condigna, o reclamo dos bens vitais mínimos, o direito à informação generalizada, ao voto e, até mesmo, a salvaguarda da cultura.
O não-cidadão do Terceiro Mundo
Mas há cidadania e cidadania. Nos países subdesenvolvidos, de um modo geral, há cidadãos de classes diversas; há os que são mais cidadãos, os que são menos cidadãos e os que nem mesmo ainda o são. Para Tereza Haguette (1981-1982), o escopo da cidadania “não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites”*. Trata-se, devemos ressaltar, de escopo outorgado, estabelecido pelos que mandam, mas jamais de escopo finalístico a atingir. É certo que a cidadania se realiza segundo diversas formas, mas não podemos partir do princípio de que homens livres possam ter respostas diferentes aos seus direitos essenciais apenas pelo fato de viverem em países diferentes. A própria autora, aliás, falando do estado de bem-estar (p. 124), critica o fato de que o exercício dos direitos correspondentes seja, ainda hoje, um privilégio de alguns países.
Nota:
*. “[…] a cidadania, como subdesenvolvimento, está associada à divisão internacional do trabalho. Seu escopo não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites. Em uma economia mundial baseada em metrópoles politicamente fortes e satélites nacionais fracos, a cidadania – como a riqueza e o desenvolvimento econômico – é desigual e estratificada” (T. Haguette, 1981-1982, p. 125).
A elaboração brasileira do não-cidadão
O caso brasileiro tem de ser analisado sob essa luz, na medida em que tais fatores, escalonados no tempo nos países do Norte, aqui aparecem e se implantam de uma só vez. A convergência de várias causas, ao mesmo tempo revolucionárias e dissolventes, iria ter um impacto fortemente negativo no processo de formação da ideia de cidadania e da realidade do cidadão. Mas nesta, como em outras questões, há uma especialidade brasileira a realçar.
Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é o instrumento da busca da ascensão social. Em lugar do cidadão formou-se um consumidor, que aceita ser chamado de usuário.
Em menos de trinta anos, isto é, no espaço de uma ou duas gerações, essas transformações se deram concomitantemente no Brasil, o que multiplicou exponencialmente o seu potencial já por si só negativo, sobretudo porque a classe média então criada já nascia debaixo das influências indicadas acima. Na realidade, tais mudanças perversas não apenas se deram paralelamente, mas sistematicamente, o que acentua a sua força ideológica, na medida em que os fenômenos correspondentes acabam por se justificar a partir de suas próprias relações causais, isto é, naturalmente. O quadro não está, certamente, completo.
Com certeza não saberíamos empreender a imensa lista de variáveis com valor explicativo, mas temos de acrescentar, pelo menos, mais duas, extremamente imbricadas com as demais. Uma é a imersão do país, desde praticamente o fim da Segunda Guerra Mundial, em um clima de guerra fria e o concomitante engajamento em uma política econômica subordinada à Aliança Atlântica. Essa causa é muito pouco mencionada quando se deseja equacionar a problemática nacional, mas realmente está presente na equação política internacional e interna, na condução da economia, na conformação da sociedade e na moral correspondentes, tanto quanto na configuração territorial.
O modelo econômico que conduziu ao chamado “milagre econômico” vai buscar suas raízes nos mesmos postulados que levaram à supressão das liberdades civis, acusadas então como um fermento deletério, capaz de levar o país à anarquia. Trata-se, também, de um modelo político e social, responsável tanto pela eliminação do embrião de cidadania que então se desenvolvia, como pela opção de alargamento de uma nova classe média em detrimento da massa de pobres que o “milagre” não apenas deixou de suprimir, como também aumentou*. O crescimento econômico assim obtido, fundado em certos setores produtivos e baseado em certos lugares, veio a agravar a concentração da riqueza e as injustiças, já grandes, de sua distribuição. Entre as pessoas e entre os lugares. Como tal crescimento se fazia paralelamente ao apelo a um consumo impossível de se generalizar, as linhas de crédito abertas para fortalecer os produtores ajudaram a agravar as desigualdades e santificar as distorções. O equipamento do país, destinado ao escoamento mais frágil e mais rápido dos produtos, serviu, ao modelo econômico que o gerou, para a criação do modelo territorial correspondente: grandes e brutais migrações, muito mais migrações de consumo que de trabalho, esvaziamento demográfico em inúmeras regiões, concentração da população em crescimento em algumas poucas áreas, sobretudo urbanas, com a formação de grandes metrópoles em todas as regiões e a constituição de uma verdadeira megalópole do tipo brasileiro no Sudeste.
Além do que, para os seus moradores menos móveis, a cidade é impalpável. Ela, porém, impõe-se como um amontoado de signos aparentemente desencontrados, agindo, no entanto, em concerto, para limitar mais do que para facilitar a minha ação, tornando-me impotente diante da multiplicidade das coisas que me cercam e de que posso dispor**.
Notas:
*. “Não existe um livro chamado ‘O espírito das futuras leis brasileiras’, nem Montesquieu para escrever este livro. […] O texto não existe porque o espírito que buscamos necessita de uma conjuntura de ideias e instituições inéditas.
E esse espírito tem de enquadrar um sistema de desenvolvimento acelerado com a redistribuição de renda e um Estado com sérias capacidades para manter o processo de desenvolvimento e redistribuição da renda ao mesmo tempo. Esse espírito exige instituições que possam manter a liberdade individual e a participação social e política” (Truber, 1981, pp. 151-152).
**. A concentração urbana e, com ela, a diferenciação crescem mais depressa para a produtividade. É o fundamento da alienação urbana. Um equilíbrio neurótico termina, no entanto, por se estabelecer em benefício da ordem mais coerente da produção […]” (Baudrillard, 1970, p. 87).
Uma sociedade multitudinária
Criava-se, assim, uma sociedade multitudinária – seria, já, uma sociedade de massas ou um seu arremedo? – sem o concomitante de um real consumo de massa, pois o poder aquisitivo faltava cruelmente a uma grande parcela dos novos urbanos. O consumo de massa é multiforme e abrangente. O que se deu no Brasil foi um consumo exclusivo que, mesmo para os estratos sociais beneficiados, mais se referiu a alguns bens materiais que ao conjunto de bens, a começar pelos bens imateriais, que facilitam o acesso a uma vida não apenas confortável, como, também mais digna*.
O consumo de massa esboçado valeu-se da mídia, em crescimento vertical, para impor gostos e preços. Esse trabalho de sedução foi facilitado pela própria atração que as novas mídias impuseram sobre o público**. Criadores da moda, difusores do crédito, o papel dos meios de difusão deve ser realçado como o do colaborador privilegiado das artimanhas da produção de massas estilo brasileiro, uma produção de massas contente de si mesma e necessitada apenas de um mercado voluntariamente restringido. Isso garante o não-esgotamento da revolução das esperanças – isto é, das grandes esperanças de consumir -, e ajuda a colocar, como meta, não propriamente o indivíduo tornado cidadão, mas o indivíduo tornado consumidor.
Os efeitos daninhos dessa metamorfose ainda se farão sentir por muito tempo, e agora funcionam mais como um fator limitativo na elaboração de um projeto nacional mais consequente, já que os projetos projetos pessoais afloram e se exprimem com um vasto componente de alienação. É assim para a maioria da população, desprovida de meios para uma análise crítica de sua própria condição.
Também é ainda mais grave para os milhões de indivíduos que nasceram depois que tal processo se iniciou ou que a ele se incorporaram sem poder distinguir aspirações pessoais legítimas e imposições do sistema econômico e político. Trata-se aqui daquela confusão entre liberdade e dominação, de que fala Marcuse quando se refere às condições de existência no mundo de hoje***.
A urbanização fundada no consumo é, também, a matriz de um combate entre a cultura popular que desertava as classes médias para ir se abrigar nos bairros pobres, cultura popular hoje defendida pelos pobres, cuja pobreza impede, afinal, sua completa imersão nessas novas formas de vida, fundadas pelo mesmo consumo que levou os pobres à cidade ou nesta fez pobres os que ainda não o eram.
Na cidade, sobretudo na grande, os cimentos se dissolvem e mínguam as solidariedades ancestrais. Ali onde o dinheiro se torna a medida de tudo, a economização da vida social impõe a competitividade e um selvagismo crescentes. As causas dos males aparecem como se fossem a sua solução, círculo vicioso que escancara as portas das favelas para a cultura de massas, com o seu cortejo de despersonalização, e a substituição dos projetos pessoais saídos da cultura, isto é, de dentro do indivíduo, por outros projetos elaborados de fora deste mesmo indivíduo, projetos decididos a conquistar todo mundo pela força da propaganda*¹. Assim, a cultura popular, cultura “selvagem” e irracional, é substituída, lenta ou rapidamente, pela cultura de massas; o espaço “selvagem” cede lugar a um espaço que enquadra e limita as expressões populares, e o que deveria surgir como sociedade de massas apenas se dá como sociedade alienada*².
Em lugar do cidadão surge o consumidor insatisfeito e, por isso, votado a permanecer consumidor.Sua dependência em relação aos novos objetos limita sua vocação para obter uma individualidade e reduz a possibilidade dos encontros interpessoais diretos e enriquecedores, porque simbólicos em sua própria origem. A comunicação entre as pessoas é frequentemente intermediada por coisas. Frequentemente os movimentos de massa também se esgotam nas coisas, tendo uma lógica mais instrumental que existencial*³. As mobilizações são locais ou setoriais. A socialização capitalista, originária de uma divisão de trabalho que a monetarização acentua, impede movimentos globais e um pensamento global. A reivindicação de uns não raro representa um agravo para o outro. A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.
Uma visão mais abrangente das coisas e dos fenômenos acaba por ser negada aos cidadãos comuns, em vista da concentração da mídia, da sobrecarga de informações irrelevantes**¹ e da tendência a apenas ampliar certos aspectos da realidade, cuja escolha para a exibição pública é, com frequência, ligada ao mundo da política e dos interesses. Lindbeck (1975, p. 35) já havia chamado a atenção para a dramatização que é feita sob “problemas específicos e concretos” que atraem e fixam a atenção sobre aspectos geralmente menores dos eventos. Quem olha a televisão com algum senso crítico já deve ter-se apercebido dessa forma de manipulação dos acontecimento.
Notas:
*. Em uma de suas colaborações semanais à página 2 da Folha de S. Paulo, intitulada “Celso Furtado Revisitado”, Jarbas Passarinho comenta a impressão que obteve, há vinte anos, do livro “A Pré-Revolução Brasileira”, do renomado economista brasileiro. Celso Furtado já se referia ao dilema entre a liberdade e o desenvolvimento rápido, considerado como um falso dilema pelo comentarista atual. Na verdade, a contradição se deu entre um crescimento material acelerado pouco preocupado com a essência e a realização cultural da sociedade, oferecendo como resultado as cidadanias de segunda e terceira classe que caracterizavam a esmagadora maioria dos brasileiros. Cidadãos de primeira classe são os que se beneficiam desse crescimento econômico distorcido.
**. “A deformação que se faz a respeito dos meios de comunicação eletrônicos decorre, portanto, da evidente deformação do significado do que eles efetivamente transmitem e de uma incompreensão a respeito da relação entre a aparência e a essência dos fenômenos no processo de conhecimento. Se a televisão e o rádio são ainda os únicos instrumentos que atingem as dezenas de milhões de brasileiros que mal manejam um lápis, que mal soletram o ABC, a papagaiada em torno do fim das barreiras culturais entre povos, a falência da escrita – e do jornalismo escrito – são criações de intelectuais que leram excessivamente e tiveram contato quase nenhum com as lutas políticas, econômicas, culturais e ideológicas práticas do povo brasileiro” (“Projeto de um Diário”, Retrato do Brasil, São Paulo, Política, 1984, p. 7).
***. “Psicologicamente, e é só isso o que aqui nos preocupa, a diferença entre dominação e liberdade está se tornando menor. O indivíduo reproduz, em seu nível mais profundo, na sua estrutura de instintos, os valores e os padrões de comportamentos que servem menos para manter a dominação, enquanto a dominação se torna cada vez menos autônoma, menos ‘pessoal’, mais objetiva e mais universal. O que hoje domina é o aparelho econômico, político e cultural, que se tornou uma unidade indivisível construída pelo trabalho social” (Marcuse, 1970, p. 3).
*¹. A propósito da forma como a imprensa escrita, falada e televisionada influi sobre a mente dos indivíduos, pode ser útil a leitura de um livro didaticamente redigido: “Mídia: O Segundo Deus”, de Tony Schwartz (1986). Um enfoque filosófico do tema é oferecido por Hans Magnus Enzensberger em “The Consciousness Industry…” (1974).
*². “A mídia tende a focalizar mais as notícias ruins do que boas, a mostrar as aberrações em lugar do que é normal. É possível que, fazendo assim, esteja correspondendo ao gosto público. Mas o resultado […]” (Rybczynski, 1985, p. 27).
*³. “O poder social é, hoje, mais que nunca, mediado pelo poder das coisas. Quanto mais intensa a implicação do homem com as coisas, e mais as coisas o dominam e mais lhe faltam aqueles traços individuais genuínos e mais sua mente será transformada em um autômato da razão formalizada” (Horkheimer, 1974, pp. 129-130).
**¹. “Esse estado de superinformação perpétua e de subinformação crônica caracteriza nossas sociedades contemporâneas.
O imediato torna, de fato, a decifração de um acontecimento ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil. Mais fácil porque choca de imediato, mais difícil porque se manifesta totalmente de imediato. Num sistema de informações mais tradicional, o acontecimento assinala por seu próprio conteúdo sua área de difusão. Sua rede de influências era, cada vez mais, definida por aqueles aos quais tocava. Seu traço era mais linear […] estando doravante cortados os intermediários, opera-se uma telescopagem, e na incandescência das significações ficamos cegos” (Nora, 1976, p. 189).
Imagens: Lucas Rocha
Referência:
SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo, Edusp: 2007.