Por Lucas Rocha
O entendimento do conflito árabe-israelense exige um esforço de análise que não pode ser tratado somente em um texto. Para melhor compreensão dos leitores, optei por dividi-lo em artigos menores com informações mais detalhadas, pois alguns elementos históricos e geográficos são fundamentais e não podem ser excluídos de nossa abordagem.
Evidentemente, apreender todos os fatos históricos nunca é possível em uma análise, mesmo na melhor das intensões ou com a mais apurada pesquisa, pois se trata tanto de uma região complexa em termos étnicos e geográficos, quanto em um período marcado por intensa disputa de poderes e atores diferentes. Entretanto, os principais processos e eventos faremos questão de esclarecer nesta pesquisa e, como sempre, convidamos a todos que leem a contribuir com a troca de conhecimentos na página, seja por meio de reflexões feitas sobre o texto, seja por meio de informações porventura não abarcadas aqui.
No primeiro artigo, vimos os principais processos e atores que se apropriaram do território palestino ao longo de séculos, desde a Antiguidade Clássica até meados do século XIX. Quais foram os principais impérios e reinos que marcaram presença na região. Vimos também o processo de produção espacial em Jerusalém, ou seja, como alguns povos, culturas e religiões modificaram a paisagem e o uso do território, apropriaram-se afetivamente do lugar e lá constituíram seus principais símbolos e elementos sagrados das três maiores religiões do mundo.
Neste texto, daremos continuidade à análise iniciada sobre o conflito. Investigaremos as principais mudanças na região de acordo com a cronologia histórica e com o contexto de poder conferido às potências neo-coloniais, sobretudo, no decorrer do século XIX.
O Século XIX: o neo-colonialismo e reestruturação territorial na I Guerra Mundial
O Oriente Médio sempre foi um caldeirão étnico. Esta realidade é o elemento que torna o estudo sobre esta região um processo árduo e de difícil apreensão, pois não há etnia que esteja fixa em um território continuamente. Em muitos casos, há uma mescla de povos, línguas, religiões e práticas culturais espalhadas por diversas regiões, as quais formam “uma colcha de retalhos” sem um padrão linear de povoamento.
Segundo o Professor Dr. Michael Izady (2015), cartógrafo e professor do Instituto de Tecnologia da Universidade de Nova York, a identificação cartográfica das diversas etnias que compõem o Oriente Médio normalmente não é correta ou precisamente detalhada em fontes de pesquisas feitas por ocidentais, pois sucessivamente tais mapas simplificam a diversidade étnica da região, elementos fundamentais para o entendimento da dinâmica médio-oriental.
O que normalmente ocorre é uma descrição rasa do conceito de etnia. Para Izady (2015), etnia se refere a uma identidade de grupo e esta, por sua vez, é um produto histórico. Ou seja, uma etnia não pode ser classificada com base em um único fator, tal como a língua, mas sim, é o resultado de um processo que coincide diversas categorias assim como língua, religião, modos de vida, história comum de sofrimento ou perseguição e, até mesmo, uma economia integrada. Em alguns casos, há a combinação de um ou mais fatores, em outros casos, somente um deles define uma etnia. Tais combinações estão precisamente caracterizadas no mapa abaixo, feito pelo professor, no qual se exemplificam as etnias originárias da região, compreendidas pela incidência de um ou mais critérios citados acima:
Portanto, mesmo que um determinado império, ao longo de séculos, estivesse presente política e militarmente em um território contínuo e extenso, nenhum império poderia ser entendido como etnicamente homogênico. Por diversas vezes e sob diversos domínios, os impérios que marcaram presença na região (Romano, Bizantino, Árabe, Cruzados e Turco-Otomano) tiveram conflitos internos sob motivações separatistas, justamente por se clamar pela soberania e independência de determinada etnia sobre outra, ou controle de determinada porção do território por determinado grupo étnico que a controlava.
Dessa forma, o controle político e militar sempre se manteve incerto para os impérios com o passar das décadas. As fronteiras apresentavam maior fluidez e as zonas de instabilidade eram consideravelmente superiores que o atual modelo político de Estado-nação vigente desde o século XX para cá. Insurgências, guerras e as tomadas de controle tinham, como maiores pressupostos, a identificação de grupos étnicos em comum, ou grupos com forte poder político, econômico e militar. Ao longo do século XIX, é possível se observar a dinâmica territorial de poder no Oriente Médio. Disponibilizamos uma série de mapas produzidos pelo professor Izady, os quais apresentam uma série histórica (1800; 1840; 1850 e 1875). Nesta série, verificam-se as mudanças nas fronteiras dos principais impérios, califados e emirados. É interessante notar que, embora determinadas áreas estejam teoricamente sobre o domínio de um império, na prática o controle era exercido por separatistas ou outros grupos paralelos ao poder imperial. Esses casos estão descritos com detalhes nos mapas abaixo:
Embora o Império Turco-Otomano tenha chegado até o final do século XIX com seu território consolidado em amplas porções das penínsulas Anatólia (onde se encontra a Turquia atualmente) e Arábica, além de boa parte dos Bálcãs, na Europa; Mesopotâmia (onde atualmente é Iraque) e Palestina, no Oriente Médio; além de extensas porções da Líbia, no norte da África; estava cada vez mais custoso manter toda a estrutura de poder dentro de suas fronteiras.
Ademais, outro fator de ordem global começava a tomar forma e proporções na região. O mundo começa a adentrar em um novo paradigma neo-colonial moderno, cujos expoentes maiores são representados pelos Império Britânico e Francês, sobretudo na África. A expansão territorial dos europeus, com muito mais fôlego e poder, pressionava cada vez mais os otomanos. O Império Russo também incomodava devido a suas ambições expansionistas nas fronteiras ao norte dos turco-otomanos.
O processo de expansão imperialista europeu avançou sobre o continente africano e caracterizou-se por explorá-lo e partilhá-lo em diferentes territórios, os quais, futuramente, representariam Estados ainda sob o domínio e a influência dessas potências. A França, até este momento, já dominava grandes porções do Magreb (noroeste da África), sobretudo Marrocos e Argélia. Por sua vez, o Egito passava cada vez mais para o domínio inglês, o que representou uma grande conquista devido ao controle do Canal de Suez – importante rota de passagem para navios entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho. De certo modo, aproximava infinitamente o comércio marítimo europeu com o asiático.
As razões pelas quais se deram a partilha do Império Otomano pelos britânicos tiveram um contexto geopolítico particular. O Império Otomano representava ideologicamente, até o século XIX, uma potência árabe com base na ideia de integrar diversas nações islâmicas – os califados – em um único império. Ainda sim, os otomanos recebiam apoio de diversas nações islâmicas em outras localidades no planeta, contudo, isso não foi suficiente para assegurá-los de enfrentar as outras potências.
Por outro lado, manifestações nacionalistas espalharam-se pelo império, o que o levou a ter grandes perdas nos domínios dos Bálcãs, nas últimas décadas do século XIX. O fracasso dos otomanos começou a partir de então, pois iniciaram um processo de modernização do império como tentativa de recuperação e competitividade econômica. Este processo incluiu tanto um avanço industrial – com a implantação de ferrovias e linhas de telégrafos – quanto um avanço educacional e legislativo – abertura de universidades e escolas e a tentativa de se modificar o direito civil tornando-o laico e mais “ocidentalizado”, entre outras medidas.
I Guerra Mundial, Holocausto Armênio e colapso do Império Turco-Otomano
As tentativas de modernização e reforma se tornaram dívidas impagáveis para o governo otomano. O colapso do império foi inevitável, uma vez que o mesmo se tornou aliado da Alemanha, que era vista na época como ideal de modernização e industrialização. Esta aliança representou uma tomada de decisão que custaria a partilha do Império Otomano durante e após a Primeira Guerra Mundial, pois o mesmo posicionou-se ao lado da Tríplice Aliança (Império Alemão, Império Austro-Húngaro e, inicialmente, Itália), a qual foi derrotada pelas potências da Tríplice Entente (Império Russo, França, Reino Unido e, posteriormente, Estados Unidos)
A inconsistência do Império Otomano devido a suas diversas insurgências nacionalistas, além das tentativas fracassadas de modernização que lhe causaram endividamento, levou a consequências radicais e históricas no decorrer da Primeira Guerra para a população armênia. Os governantes turco-otomanos realizaram entre 1915 e 1923 o primeiro holocausto do século XX culminando na morte de, aproximadamente, 1,5 milhão de armênios, localizados a leste da Península Anatólia, norte da Síria e sul do Cáucaso. O episódio envolveu deportação em massa, genocídio em campos de concentração e experimentos biológicos.
A carnificina resultada do holocausto armênio e da Primeira Guerra Mundial eclodiu em uma crise humanitária e econômica que acabou definitivamente com o Império Turco-Otomano. Paralelamente ao farelamento do antigo império, os ingleses também conspiravam com algumas elites árabes afim de incentivar mais uma vez o nacionalismo árabe e facilitar o descontrole otomano. A oposição entre os árabes e os líderes otomanos, que ainda tentavam modernizar o império foi representada pelo rico Sharif Hussein, governante hereditário de Meca, cuja família se acreditava ser descendente do profeta Mohamed. Os britânicos estabeleceram relações com Hussein prometendo-lhe entregar uma grande nação árabe independente.
Entretanto, ainda em 1916, Inglaterra, França secretamente assinaram o acordo de Sykes-Picot, o qual posteriormente envolveu Rússia e Itália. Este acordo dividia os territórios remanescentes do Império Otomano de acordo com os interesses das nações vencedoras da Primeira Guerra Mundial afim de se expandir os territórios coloniais sob a pretensão de exploração econômica, tal como na África.
Todavia, conforme salienta o professor Izady (2010), tais pretensões coloniais europeias no Oriente Médio jamais vieram a ocorrer devido a entrada dos Estados Unidos na I Guerra Mundial no início de 1918. A influência norte-americana resultou na aplicação da Doutrina Wilson, a qual dava à região um caráter diferenciado, supervisionado pela então Liga das Nações. Dessa forma, esse sistema prevenia os impérios coloniais de realizar uma “total colonização” no Oriente Médio assim como havia ocorrido na África e Ásia. Na verdade, este episódio consolidou o poder e a influência dos Estados Unidos frente às antigas potências coloniais, descentralizando assim os eixos de decisão global sobre territórios no mundo, antes circunscritos somente à Europa.
Portanto, em função das áreas divididas secretamente pelo acordo de Sykes-Picot após o desmembramento do Império Otomano, a Liga das Nações delegou aos impérios coloniais vencedores a autorização para administrá-los mediante o sistema de mandatos. A França recebeu o mandato da Síria – que, posteriormente, dividiu seu território em dois Estados: Líbano e Síria; A Inglaterra recebeu o mandato do Iraque, Emirado da Transjordânia e Palestina; A Itália, por ter participado do acordo, recebeu os territórios da Líbia e Península Anatólia (Turquia); A Rússia, por sua vez, tornou-se comunista em 1917 e, por isso, passou a estar fora do processo de partilha do antigo Império Otomano. Os detalhes da partilha dos territórios estão mais precisamente demonstrados no mapa a seguir:
A esfera de influência das potências coloniais no Oriente Médio reconfiguraram as divisões políticas da região, cujas decisões estiveram todo o tempo alheias às características étnicas ou identitárias da população. Muito embora os traçados do acordo Sykes-Picot tentaram agrupar, em termos muito generalistas, alguns grupos culturais e religiosos em um mesmo território, o modelo estrangeiro de administração e exploração agravou tensões étnicas já muito complexas desde outrora. Adicionado a isto, agora sob mandato da Coroa Britânica, os ingleses garantiram ao Movimento Sionista na Europa a possibilidade de imigração para a Palestina por meio da Declaração de Balfour. Com isso, outro elemento agregava-se no disputado campo de forças do Oriente Médio.
Até as primeiras décadas do século XX, a região já começava a tomar a forma com as fronteiras que conhecemos atualmente. Os traçados retilíneos decididos pelos colonizadores deram origem a novos Estados-nação, independentes do mandato britânico, começando pelo Egito – em 1922 – seguindo pelo Iraque – em 1932. No entanto, a influência britânica continuou firme nos bastidores da política desses países, assim como diretamente nos demais territórios sob sua administração, conforme se verifica neste mapa representando o período de 1925:
O antigo Império Turco-Otomano, após perder na I Guerra Mundial e ter seus territórios partilhados por Inglaterra, França e Itália reduziu sua extensão consideravelmente, restringindo-se ao meio norte da Península Anatólia. Aproximadamente, desde 1919 a 1923, houve um intenso movimento nacionalista, resultando em um esforço conjunto de exércitos turcos e curdos na recuperação do território otomano perdido. A retomada de terra se deu contra o controle italiano, no sul da península, além de áreas sob o controle do mandato francês, a leste.
Em 1924, o movimento republicano ganha força e extingue oficialmente o califado otomano. Uma profunda reforma estrutural, liderada por Kemal Atatürk, dá início à República da Turquia. As mudanças foram além das estruturas políticas, pois o “pai dos turcos” – significado carinhoso de Atatürk – propôs uma intensa modernização, passando pela secularização das instituições públicas e a ocidentalização da língua turca, modificando os caracteres arábicos pelos latinos. O território turco estabelece definitivamente suas fronteiras conforme se verifica no mapa acima, em 1925.
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No próximo texto, continuaremos nossa análise aprofundando nos principais detalhes que marcaram o século XX e a eclosão real do conflito israelo-palestino. Até este ponto, fizemos questão de esclarecer o máximo possível o contexto histórico, social e cultural da região. Esses pressupostos são fundamentais para assimilar a complexidade dos conflitos.