Sobre o conceito de Anarquia

Por Zygmunt Bauman

O conceito de “anarquia” carrega o peso de sua história essencialmente antiestatal. De Godwin a Kropotkin, passando por Proudhon e Bakunin, os teóricos e fundadores dos movimentos anarquistas apresentaram esse termo como a designação de uma sociedade alternativa, o avesso de uma ordem coercitiva e imposta pelo poder. Essa sociedade que postulavam diferiria da existente devido à ausência do Estado – a síntese do poder desumano, intrinsecamente corruptor. Uma vez desmantelado e eliminado o poder do Estado, os seres humanos recorreriam (retornariam?) aos valores da ajuda mútua, usando, como Mikhail Bakunin vivia repetindo, sua capacidade natural de pensar e de se rebelar¹.

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Greve de 1917 em São Paulo. Movimento Anarquista (com bandeiras pretas) marchando ao lado de operários. Imagem: Wikipedia.

A fúria dos anarquistas do século XIX concentrava-se no Estado – no Estado moderno, para ser preciso, uma novidade na época, que ainda não estava entrincheirado de modo suficientemente sólido para reclamar legitimidade tradicional ou basear-se na obediência rotinizada. O Estado empenhava-se em obter um controle meticuloso e ubíquo sobre todos os aspectos da vida humana que os antigos poderes haviam deixado para os recursos coletivos locais. Reclamava o direito e os meios legais para interferir em áreas das quais os antigos poderes, embora opressivos e exploradores, mantinham distância. Em particular, incumbiu-se de desmantelar les pouvoirs intermédiaires, ou seja, as formas de autonomia local, de autoafirmação comunal e de autogoverno. Sob ataque, as formas habituais de solução dos conflitos e problemas gerados pela vida em conjunto pareceram ser, para os pioneiros dos movimentos anárquicos, dadas de forma não problemática e, portanto, “naturais”. Também eram imaginadas como autossustentáveis e totalmente capazes de manter a ordem sob todas as condições e circunstâncias, desde que protegidas das imposições originárias do Estado. A anarquia, isto é, uma sociedade sem o Estado e suas armas de coerção, era visualizada como uma ordem não coercitiva na qual a necessidade não se chocaria com a liberdade nem esta se colocaria no caminho dos pré-requisitos da vida em grupo.

O Weltanschauung do anarquismo inicial compartilhava com o socialismo utópico da época um forte sabor nostálgico (os ensinamentos de Proudhon e Weitling simbolizando sua íntima afinidade); o sonho de sair da estrada em que se havia entrado com o nascimento de uma nova e moderna forma de poder social e de capitalismo (ou seja, a separação entre o negócio e o lar) – de volta ao conforto, mais romantizado do que genuinamente livre de conflito, da unidade comunal de sentimentos e ações. Foi nessa forma inicial, nostálgica e utópica, que a ideia de “anarquia” se estabeleceu na aurora da sociedade moderna e na maioria de suas interpretações político-científicas.

Mas havia no pensamento anarquista outro significado, menos demarcado pelo tempo, oculto por trás de sua ostensiva rebelião antiestatal e, por essa razão, facilmente negligenciável. Esse outro significado é próximo daquele da imagem da communitas de Victor Turner:

É como se houvesse aqui dois “modelos” importantes, justapostos e alternados, para o inter-relacionamento humano. O primeiro é o da sociedade como um sistema estruturado, diferenciado e frequentemente  hierárquico de posições político-jurídico-econômicas… O segundo… é o da sociedade como uma communitas, comunidade ou mesmo comunhão, desestruturada ou estruturada de forma rudimentar, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos dignitários rituais².

Turner usava a linguagem da antropologia e localizou a questão da communitas dentro da problemática antropológica costumeira, preocupada com as diferenças entre as formas pelas quais os agregados humanos (“sociedades”, “culturas”) asseguravam sua durabilidade e sua autorreprodução contínua. Mas os dois modelos descritos por ele também podem ser interpretados como representações de modos complementares de coexistência humana que se misturam em diversas proporções em todo e qualquer grupo humano, e não como diferentes tipos de sociedades.

Nenhuma variação do convívio humano é plenamente estruturada, nenhuma diferenciação interna é totalmente abrangente, inclusiva e livre de ambivalência, nenhuma hierarquia é total e congelada. A lógica das categorias imperfeitas preenche a diversificação endêmica e a desordem das interações humanas. Cada tentativa de completar a estruturação deixa grande número de “fios soltos” e significados contenciosos. Cada uma delas produz espaços em branco, áreas indefinidas, ambiguidades e territórios “de ninguém” que carecem de levantamentos e mapas oficiais. Todas essas sobras do esforço de trazer a ordem constituem o domínio da espontaneidade, da experimentação e da autoconstituição humanas. A communitas é, para o bem ou para o mal, o revestimento de todo o conjunto de societas – e na sua ausência (se isso fosse concebível) esse conjunto se dispersaria:  as societas se desintegrariam em suas suturas. São as societas com sua rotina e a communitas com sua anarquia que, em conjunto, numa cooperação relutante e dominada pelo conflito, fazem a diferença entre a ordem e o caos.

A tarefa que a institucionalização, com seus braços coercitivos, realizou de modo deficiente ou deixou de cumprir ficou para ser consertada ou completada pela inventividade espontânea dos seres humanos. Tendo-lhe sido negado o conforto da rotina, a criatividade (como apontou Bakunin) tem apenas duas faculdades humanas em que se basear: a habilidade de pensar e a tendência (e coragem) de se rebelar. O exercício de cada uma das duas é repleto de riscos e, ao contrário da rotina arraigada e protegida de modo institucional, não se pode fazer muito para minimizar esses riscos, muito menos eliminá-los. A communitas (que não deve ser confundida com as contrassociedades que reclamam o nome de “comunidade”, mas que se ocupam em emular os meios e recursos da societas) habita a terra da incerteza – e não sobreviveria em nenhum outro país.

A sobrevivência e o bem-estar da communitas (e também, indiretamente, da societas) dependem da imaginação, inventividade e coragem humanas de quebrar a rotina e tentar caminhos não experimentados. Dependem, em outras palavras, da capacidade humana de viver em riscos e de aceitar a responsabilidade pelas consequências. São essas capacidades que constituem os esteios da “economia moral” – cuidado e auxílio mútuos, viver para os outros, urdir o tecido dos compromissos humanos, estreitar e manter os vínculos inter-humanos, traduzir direitos em obrigações, compartir a responsabilidade pela sorte e o bem-estar de todos – indispensável para tapar os buracos escavados e conter os fluxos liberados pelo empreendimento, eternamente inconcluso, da estruturação.

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¹. Ver o profundo estudo de Valentina Fedotova, “Anarkhia i poriadok” (Anarquia e ordem). Voprosy Filosofii 5 (1997), recentemente reimpresso numa coletânea de estudos da autora sob o mesmo título (Moscou, Editorial URSS, 2000, p. 27 – 50).

². Victor Turner, The Ritual Process: Structure and Anti-structure. Londres, Routledge, 1969,  p. 96.

Referência:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. pp.: 91 – 94. Rio de Janeiro, Zahar: 2009.

O Tempo nas Cidades

Por Milton Santos

O texto que se segue é um esboço de uma velha ambição que jamais pude realizar (e espero poder realizá-la ainda) que é oferecer um curso de pós graduação sobre o tempo. Ainda que não seja filósofo, sou geógrafo, parto da ideia de que a Geografia é uma filosofia das técnicas, considerando a técnica como a possibilidade de realização da História, de mudança da História, de visibilidade dessas rupturas.

A Geografia pretende utilizar como um de seus campos de trabalho ou como uma das geografias possíveis, aquela que se preocupa com a apreensão do contexto dos atuais e diferentes momentos, o que faz dela, de alguma maneira, a história de cotidianos sucessíveis. O entrosamento entre técnica e História permite o entendimento do que se passou, do que se passa e, eventualmente do que vai se passar, quando as técnicas se tornam um conjunto unificado e único, movidas por um motor também único, o que permite uma visibilidade do futuro.

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O Tempo. Imagem: Free Digital Photos.

O tempo pode ser encarado das mais diversas maneiras; eu, como não sou filósofo, repito, apenas vou tomar alguns filósofos como ponto de partida, como ajuda na minha conversa. Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele divide o tempo em três tipos: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. O tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; o tempo histórico, objetivado, pois a História o testemunha, mas no qual há censuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o tempo do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas, esses tempos todos se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social. Parafraseando Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse tempo do homem, do tempo social contínuo e descontínuo, que não flui de maneira uniforme, que temos de tratar. E é por aí que se vê que esses diversos tipos de tempo se convergem e se divergem. Convergem na experiência humana e divergem na análise.

Do tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo Histórico, vai toda uma evolução que é assinalável na História. O relógio que é descoberto num determinado momento da História, é redescoberto neste século com o taylorismo e depois com o fordismo, um tempo que é medida do relógio, se não o enchermos dessa substância social. O tempo individual, tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo sucessão, tempo social, o ontem, o hoje, o amanhã. Essas sequências, que nos dão as mudanças que fazem história, criam as periodizações, isto é, as diferenças de significação.

Nesse momento, eu gostaria de me referir a um filósofo latino-americano, Sérgio Bagú, que distingue entre o tempo como sequência – o transcurso – e o tempo como raio de operações – o espaço – e o tempo como rapidez de mudanças, como a riqueza de operações. Aí se vê que o tempo aparece como sucessão, permitindo uma periodização; depois aparece como raio de operações, isto é, o tempo que nos é concomitante, que nos é coetâneo, ou que foi coetâneo de outra geração, e essas duas acepções do tempo nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico como um todo, mas a cidade em particular. Há uma ordem do tempo que é das periodizações, que nos permitem pensar a existência de gerações urbanas, em cidades que se sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo diferentes maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes ideologias.

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Páteo do Colégio, São Paulo. Imagem: Rafael Acorsi, Visual Hunt. 

Na cidade atual, essa ideia de periodização é ainda presente; é presente nas cidades que encontramos ao longo da História, porque cada uma delas nasce com características próprias, ligadas às necessidades e possibilidades da época, e é presente no presente, à medida que o espaço é formado pelo menos de dois elementos: a materialidade e as relações sociais. A materialidade, que é uma adição do passado e do presente, porque está presente diante de nós, mas nos traz o passado através das formas: basta passear por uma cidade, qualquer que seja, e nos defrontaremos com ela, em sua paisagem, com aspectos que foram criados, que foram estabelecidos em momentos que não estão mais presentes, que foram presentes no passado, portanto atuais naquele passado, e com o presente do presente, nos edifícios que acabam de ser concluídos, esse presente que escapa de nossas mãos. Na realidade, a paisagem é toda ela passado, porque o presente que escapa de nossas mãos já é passado também. Então, a cidade nos traz, através de sua materialidade, que é um dado fundamental da compreensão do espaço, essa presença dos tempos que se foram e que permanecem através das formas e objetos que também são representativos de técnicas. É nesse sentido que eu falei que a técnica é sinônimo de tempo: cada técnica representa um momento das possibilidades de realização humana e é por isso que as técnicas têm um papel tão importante na preocupação de interpretação histórica do espaço.

Ora, essas técnicas que nos trazem as periodizações, que nos permitem reconstituir com aquele palimpsesto, que é a paisagem, a acumulação de tempos desiguais, que é a paisagem urbana, como ela chega até nós, permitem-nos também passar dos tempos justapostos aos tempos superpostos. Se considerarmos a história ao longo do espaço e do tempo ao longo da História, vamos ver que ela é o passar de momentos que se propuseram justapostos, isto é, em cada sociedade que criava o seu tempo através de suas técnicas, através do seu espaço, através das relações sociais que elaborava, através da linguagem que conjuntamente criava também, a tempos que não são mais justapostos, tempos que são superpostos, isto é, aquele momento que o capitalismo entroniza, no qual há uma tendência à internacionalização de tudo e que vai se realizar plenamente nos tempos dos quais somos nós contemporâneos, onde há uma verdadeira mundialização.

Esse momento no qual vivemos, para repetir Chesnaux, é de uma sociedade sincrônica, integral, na qual o homem vive sob a obsessão do tempo, sociedade essa que é, ao mesmo tempo, cronofágica. Nessa sociedade cronofágica, à qual o tempo cede, nós encontraremos a cidade, tal como descrita por Baillard, no seu Cronópolis: dizia ele que, no seu esplendor, essa cidade era como um organismo fantasticamente complexo. Transportar a cada dia quinze milhões de empregados de escritório, manter o serviço de eletricidade, de água, de televisão, administrar toda essa população, tudo isso dependia de um só fator: o tempo! Esse organismo não poderia subsistir senão sincronizado estritamente cada passo, cada refeição, cada chamada telefônica. Daí, houve a necessidade de descongestionar os horários, segundo a zona da cidade. Os carros tinham placas com cores diferentes de acordo com o horário em que podiam circular, e assim o sistema se generalizou. Só se podia ligar a máquina de lavar, postar uma carta ou tomar um banho, durante uma faixa determinada de tempo. Caso contrário, os fusíveis saltavam e a recuperação do sistema seria muito cara. No edifício que, antigamente, era um dos maiores parlamentos do mundo, isto é, o lugar onde se faziam leis, nesse décor de estilo gótico perpendicular, uma espécie de ministério do tempo estava pouco a pouco se constituindo, em torno de um relógio gigantesco. Os programadores eram, de fato, os senhores absolutos da cidade. E a totalidade da existência de cada um era impressa nos boletins expedidos a cada mês pelo Ministério do Tempo.

Num retrato de uma obra orientada para o futuro, vemos o retrato das cidades em que vivemos. São Paulo que conheci quando jovem tinha relógios, mas aqueles relógios eram apenas uma mostra da modernidade. São Paulo não era uma cidade grande, mas imitava os grandes centros para parecer também uma cidade grande. Nesse entretempo, os relógios desapareceram de São Paulo, e reaparecem agora, quando São Paulo se torna cronópolis. São Paulo se torna cronópolis como qualquer outra cidade grande do mundo, ao mesmo tempo em que as assincronias e as dessincronias se estabelecem. O império do tempo é muito grande sobre nós, mas é, sobre nós, diferentemente, estabelecido. Nós, homens, não temos o comando do tempo na cidade; as firmas não o têm, assim como as instituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um tempo que é comandado, aí sim, pelo espaço.

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Imagem: Visual Hunt. 

Nesse momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e algumas pessoas o descreveram assim, a realidade é exatamente oposta. O espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. Certo que Kant escreveu também que o espaço aparece como uma estrutura de coordenação desses tempos diversos. O espaço permite que pessoas, instituições e firmas com temporalidades diversas, funcionem na mesma cidade, não de modo harmonioso, mas de modo harmônico. Também atribui a cada indivíduo, a cada classe social, a cada firma, a cada tipo de firma, a cada instituição, a cada tipo de instituição, formas particulares de comando e de uso do tempo, formas particulares de comando e de uso do espaço. Não fosse assim, a cidade não permitiria, como São Paulo permite, a convivência de pessoas pobres com pessoas ricas, de firmas poderosas e firmas fracas, de instituições dominantes e de instituições dominadas. Isso é possível porque há um tempo dentro do tempo, quer dizer, o recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é aquele que aparece como espaço.

Essa temporalização, digamos assim, prática, como Althusser havia sugerido, aparece nos contextos, que é o que a nós geógrafos interessa estudar, os contextos, a sucessão de contextos, onde o tempo, à imagem de Einstein, se confunde com o espaço, é espaço. O espaço é tempo, coisa que somente é possível nesse trabalho de empiria que nos é admissível, concebendo a técnica como tempo, incluindo entre as técnicas, não apenas as técnicas da vida material, mas as técnicas da vida social, que vão nos permitir a interpretação de contextos sucessivos. De tal maneira que o espaço aparece como coordenador dessas diversas organizações do tempo, o que permite, por conseguinte, nesse espaço tão diverso, essas temporalidades que coabitam no mesmo momento histórico.

É esta a pesquisa que eu desejaria realizar, não sei se poderei fazê-la, estou trazendo para discussão aqui neste seminário de trabalho, para ver se há viabilidade. De tal maneira que não teríamos apenas, como Fernand Braudel, nosso mestre que foi fundador da escola de História e Geografia da USP, as noções de tempo longo e de tempo curto. Eu, modestamente, proporia que ao lado dos tempos longo e curto, falássemos de tempos rápidos e tempos lentos.

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Rodovia dos Bandeirantes, São Paulo. Imagem: Ana Paula Hirama, Wikipedia, Flickr. 

A cidade é o palco de atores os mais diversos: homens, firmas, instituições que nela trabalham conjuntamente. Alguns movimentam-se segundo tempos rápidos, outros, segundo tempos lentos, de tal maneira que a materialidade que possa parecer como tendo uma única indicação, na realidade não a tem, porque essa materialidade é atravessada por esses atores, por essa gente, segundo os tempos que são lentos ou rápidos. Tempo rápido é o tempo dos indivíduos, das firmas e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. A economia pobre trabalha nas áreas onde as velocidades são lentas. Quem necessita de velocidades rápidas é a economia hegemônica, são as firmas hegemônicas. É para esta classe que tem significação uma avenida como a dos Bandeirantes, ou estradas como a dos Bandeirantes ou Anhanguera, que são estradas que sobretudo interessam às pessoas ricas que usam melhor, do seu ponto de vista, essas estradas. Do aeroporto ao centro da cidade vai-se muito depressa. Criam-se condições materiais para que o tempo gasto na viagem seja curto. Já entre os bairros vai-se mais devagar, no sentido de que não há uma materialidade que favoreça o tempo rápido.

Aqui, a materialidade impõe um tempo lento. Isso quer dizer que os pobres vivem na cidade sob tempos lentos. São temporalidades concomitantes e convergentes que têm como base o fato de que os objetos também têm uma temporalidade, os objetos também impõem um tempo aos homens. A partir do momento em que eu crio objetos, os deposito num lugar e eles passam a se conformar a esse lugar, a dar, digamos assim, a cara do lugar, esses objetos impõem à sociedade ritmos, formas temporais do seu uso, das quais os homens não podem se furtar e que terminam, de alguma maneira, por dominá-los. Naquele sentido em que Maffesoli se reportou, quando disse que os objetos deixaram de ser obedientes e passaram a nos comandar. Os objetos nos comandam de alguma maneira, mas esse comando dos objetos consagra, no meu modo de ver, essa união entre o espaço e o tempo, tal como nós geógrafos o vemos, mas, evidentemente não o espaço e o tempo dos filósofos tout court. Era o que eu tinha a dizer, pedindo ajuda e sugestões para o projeto de pesquisa.

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Milton Santos foi professor titular do Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, falecido em 24 de junho de 2001. 

Texto extraído da transcrição da conferência na mesa-redonda “O Tempo na Filosofia e na História”, promovida pelo Grupo de Estudos sobre o Tempo do Instituto de Estudos Avançados da USP, em 29 de maio de 1989. A transcrição completa foi publicada na Coleção Documentos, série de Estudos sobre o Tempo, fascículo 2, em fevereiro de 2001.

Referência: 

Clique para acessar o arquivo-71.pdf

** imagens inseridas no texto por meio do transcritor Lucas Rocha. 

As manifestações verde-amarela e o Fascismo

Por Lucas Rocha

Nos últimos tempos, o Brasil tem sido palco de uma de suas maiores crises econômicas e políticas de sua história. Neste contexto, tem se verificado o crescimento de manifestações de cunho fascista, e o pior – a maior parte da população que incorpora tais ideias não está se dando conta disso!

O fascismo teve suas primeiras manifestações na Itália do começo do século XX com Benito Mussolini e também teve seu correspondente alemão, o nazismo – do Partido Nacional Socialismo Alemão, comandado por Adolf Hitler. Dentre vários elementos, o fascismo pode ser caracterizado por seu ultra-nacionalismo, militarismo e totalitarismo. O fascismo clássico também tendia a proclamar um líder que representasse essas características, que fosse o símbolo da ordem, do progresso, da justiça e que exaltasse a nação perante todos os seus inimigos e males.

Infelizmente, todas estas características têm estado presentes nas manifestações no Brasil nos últimos anos e têm ganhado espaço e novos adeptos na sociedade. As manifestações políticas no Brasil têm sido o resultado de uma das piores crises econômica e política da história brasileira, talvez a pior em decurso. Entretanto, sem adentrar nos detalhes políticos do cenário brasileiro, um fato tem sido cada vez mais observável: o fascismo está crescendo no Brasil.

As manifestações convocadas pela direita são os principais palcos onde se observa comportamentos fascistas: apropriação e exacerbação de símbolos nacionais tais como a bandeira, o Hino, as cores nacionais, os gestos de saudação militar – tudo feito por civis. O enaltecimento exagerado das corporações militares da polícia, do exército, marinha e aeronáutica, a crença no ideário de que a ordem militar estaria isenta de sujeira e corrupção e a consolidação da ideia totalitária de que as manifestações são apartidárias, ou seja, de que não há representação por partidos políticos.

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Saudação fascista em manifestação da [ultra] direita.

O partidarismo é um dos principais pilares de uma democracia. Simplesmente porque não há neutralidade política, não há opinião que não seja partidária (por mais que você afirme que não é de direita nem de esquerda – isso é uma objeção típica de quem é de direita), e simplesmente porque a democracia se firma no diálogo de partes discordantes em função de atingir um objetivo comum para todos. É pressuposto da democracia conviver com a pluralidade de ideias e de partidos (posições políticas). Ora, manifestações apartidárias são justamente a tentativa de construir um ambiente totalitário, unipartidário (com uma única ideia) e fascista!

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A intolerância no diálogo e a violência tem se tornado recorrentes nos protestos. A não aceitação da pluralidade de ideias é uma característica fascista e totalitária.

A violência tem se tornado recorrente. A falta de consciência coletiva tem sido uma das piores características, pois coloca em risco a vida de pessoas que simplesmente emitem um: “eu não concordo“. Isto já é motivo para espancamento e linchamento de um grupo ou uma multidão contra o ser destoante. Até mesmo uma roupa ou um acessório vermelho pode se tornar objeto perigoso por atrair a atenção deste “exército de zumbis verde-amarelo”, ainda que seja pura coincidência do destino.

O recente caso brasileiro se destoa, entretanto, do fascismo clássico por não ser (em termos) etnocentrado, ou seja, não há a “crença de uma superioridade racial” como em outrora. Nestas manifestações, brancos e negros compartilham do mesmo espaço e das mesmas motivações  – que são de ordem política e econômica geral.

O fascismo está intrinsecamente ligado com os ideais conservadores de ordem militar, fundamentado em uma falsa moral cristã. Dessa forma, os apoiadores deste movimento normalmente expõem pensamentos conservadores, remetendo à religião cristã o principal suporte para o que se considera o formato ideal de família, de homem, de mulher e de sociedade  (disseminando toda a sorte de ideias machistas, homofóbicas e racistas).

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Bolsonaro sendo prestigiado por um admirador de Adolf Hitler. Está claro o apreço de neonazistas e fascistas às ideias do deputado federal, atual pré-candidato à presidência.

Outro elemento comum no fascismo está associado à eleição de um líder único que represente todos esses símbolos ultranacionalistas e ideários de moral cristã conservadora. Homem forte, exemplo para a nação, símbolo de esperança e vigor para uma nação destroçada: Benito Mussolini (Itália) e Adolf Hitler (Alemanha). Atualmente, surge no cenário político brasileiro um homem que concentra em si todos estes ideários de ultranacionalismo, enaltecimento do poder militar, sobrevalorização da moral cristã conservadora e única esperança de salvação da nação destroçada para um Brasil melhor: Jair Bolsonaro.

É preocupante que muita gente se identifique com ele claramente por seus ideais fascistas e não se dê conta disso. O fascismo cresce no Brasil em meio a um momento de fragilidade política, total despreparo na educação básica escolar (que deveria ser crítica e libertadora) e alienação da população, imersa em uma bolha de informações provindas de uma mídia partidária e extremamente tendenciosa. Não há pluralidade de ideias, há somente a mesma sensação de crise e desmoronamento do Estado. Há um geral descontentamento e descrédito nas instituições públicas – descrédito na democracia! Isto é o que motiva a direita política a se manifestar, atraindo facilmente também os que não tiveram qualquer educação crítica-política.

Não há como afirmar que as manifestações de direita são uníssonas. O que se verifica é a composição de vários grupos distintos – atraídos por ideários distintos – mas que, no total, se reconhecem pela mesma exaltação de elementos de exaltação verde-amarela. Há os que vão por motivações seletivas, atribuindo toda a culpa da condução econômica no PT somente e exigem tão-somente o impeachment ou renúncia de Dilma Rousseff, não se preocupando com quem assumiria o cargo; Há os que são mais cuidadosos e acrescentam em sua revolta membros do PMDB e PSDB pela corrupção (mas não sabem sequer as demais siglas notadamente corruptas); Há os saudosos da ditadura regime militar, que clamam por golpe intervenção militar constitucional (sic) e acham que não havia qualquer corrupção na época (afinal, nada era divulgado! – se eu não via, logo não existia); e alguns poucos defensores da monarquia (risos).

Portanto, não há uma pauta única nos protestos de direita. Não há foco nítido nem um objetivo claro (protesto contra a corrupção não é pauta específica). Porém, o único elemento simbólico que os une é a crença por estarem “lutando por uma nação livre do comunismo” – curiosamente, o fascismo clássico também era extremamente contrário às aspirações socialistas e comunistas, marxistas de maneira geral. A máxima de que “nossa bandeira jamais será vermelha” e o desejo de violência e morte aos “petistas” são os principais elementos fascistas totalitários que unem republicanos reacionários, conservadores militares e monarquistas.

O fascismo é uma doença social que tende a se agravar em tempos de fragilidade política. O fascismo não respeita a democraciasistema que, por mais que seja falho e corruptível, pois é governado por homens e mulheres corruptíveis, é ainda o melhor sistema que permite alcançar patamares de justiça social e tratamento igualitário, sem deixar de se respeitar as liberdades individuais e os contextos socioculturais de cada cidadão, por meio de debates de ideias plurais e convicções distintas.

Lute por um país melhor! Lute democraticamente! Debata, discuta e repense suas opiniões. Ouça as demais opiniões e não se deixe levar pelo senso comum e posições ideológicas da imprensa. Faça críticas, não seja proselitista. Argumente com posições sólidas, estude e analise os fatos e não compre discursos prontos! Não xingue desnecessariamente! Não agrida ou ofenda quem pensa diferente de você! Fundamente suas análises em argumentos sólidos e debata racionalmente! Desta forma sim, construiremos uma democracia sólida e madura, capaz de superar crises e se fortalecer diante delas!

Seu celular está sempre tocando (ou assim você espera)

Por Zygmunt Bauman

 

Uma mensagem brilha na tela em busca de outra. Seus dedos estão sempre ocupados: você pressiona as teclas, digitando novos números para responder às chamadas ou compondo suas próprias mensagens. Você permanece conectado – mesmo estando em constante movimento, e ainda que os remetentes ou destinatários invisíveis das mensagens recebidas e enviadas também estejam em movimento, cada qual seguindo suas próprias trajetórias. Os celulares são para pessoas em movimento.
Você nunca perde de vista seu celular. Sua roupa de jogging tem um bolso especial para ele, e você nunca sai com aquele bolso vazio, da mesma forma que não vai correr sem o seu tênis. Na verdade, você não iria a nenhum lugar sem o celular (“nenhum lugar” é, afinal, o espaço sem um celular, com um celular fora de área ou sem bateria). Estando com o seu celular, você nunca está fora ou longe. Encontra-se sempre dentro – mas jamais trancado em um lugar. Encasulado numa teia de chamadas e mensagens, você está invulnerável. As pessoas a seu redor podem rejeitá-lo e, mesmo que tentassem, nada do que realmente importa iria mudar.
Não importa onde você está, quem são as pessoas à sua volta e o que você está fazendo nesse lugar onde estão essas pessoas. A diferença entre um lugar e outro, entre um e outro grupo de pessoas ao alcance de sua visão e de seu toque, foi suprimida, tornou-se nula e vazia. Você é o único ponto estável num universo de objetos em movimento – e assim o são igualmente (graças a você, graças a você!) suas extensões: suas conexões. Estas permanecerão incólumes apesar de os que estão conectados por elas se moverem. Conexões são rochas em meio a areias movediças. Com elas você pode contar – e, já que confia na sua solidariedade, pode parar de se preocupar com o aspecto lamacento e traiçoeiramente escorregadio do terreno onde está pisando quando uma chamada ou mensagem é enviada ou recebida.

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Uma chamada não foi respondida? Uma mensagem não foi retornada? Também não há motivo para preocupação. Existem muitos outros números de telefones na lista, e aparentemente não há limite de volume de mensagens que você pode, com a ajuda de algumas teclas diminutas, comprimir naquele pequeno objeto que se encaixa tão bem em sua mão. Pense nisto (quer dizer, se houver tempo para pensar): é absolutamente improvável chegar ao fim de seu catálogo portátil ou digitar todas as mensagens possíveis. Há sempre mais conexões para serem usadas – e assim não tem grande importância quanto delas se tenham mostrado frágeis e passíveis de ruptura. O ritmo e a velocidade do uso e do desgaste tampouco importam. Cada conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é indestrutível. Em meio à eternidade dessa rede imperecível, você pode se sentir seguro diante da fragilidade irreparável de cada conexão singular e transitória.
Dentro da rede, você pode sempre correr em busca de abrigo quando a multidão à sua volta ficar delirante demais para o seu gosto. Graças ao que se torna possível desde que seu celular esteja escondido com segurança no seu bolso, você se destaca da multidão – e destacar-se é a ficha de inscrição para sócio, o termo de admissão nessa multidão.
Uma multidão de pessoas destacadas: um enxame, para ser mais preciso. Um agregado de indivíduos autopropulsores que não precisam de comandantes, testas de ferro, porta-vozes, agentes provocadores ou informantes para se manterem juntos. Um agregado em movimento no qual cada unidade móvel faz a mesma coisa, mas nada é feito em conjunto. As unidades marcham no mesmo passo sem sair do alinhamento. Coerente consigo mesma, a multidão expulsa ou atropela as unidades que se destacam – mas são apenas essas as unidades toleradas pelo enxame.
Os telefones celulares não criam o enxame, embora sem dúvida ajudem a mantê-lo como é – um enxame. Este, por sua vez, estava esperando por Nokias e Ericssons e Motorolas ávidos por servi-lo. São não houvesse enxame, qual seria a utilidade dos celulares?

Referência:

BAUMAN, Zygmunt. “Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”. pp: 78 – 80. 2009.

Geocrítica do conflito árabe-israelense: parte 2

Por Lucas Rocha

O entendimento do conflito árabe-israelense exige um esforço de análise que não pode ser tratado somente em um texto. Para melhor compreensão dos leitores, optei por dividi-lo em artigos menores com informações mais detalhadas, pois alguns elementos históricos e geográficos são fundamentais e não podem ser excluídos de nossa abordagem.

Evidentemente, apreender todos os fatos históricos nunca é possível em uma análise, mesmo na melhor das intensões ou com a mais apurada pesquisa, pois se trata tanto de uma região complexa em termos étnicos e geográficos, quanto em um período marcado por intensa disputa de poderes e atores diferentes. Entretanto, os principais processos e eventos faremos questão de esclarecer nesta pesquisa e, como sempre, convidamos a todos que leem a contribuir com a troca de conhecimentos na página, seja por meio de reflexões feitas sobre o texto, seja por meio de informações porventura não abarcadas aqui.

No primeiro artigo, vimos os principais processos e atores que se apropriaram do território palestino ao longo de séculos, desde a Antiguidade Clássica até meados do século XIX. Quais foram os principais impérios e reinos que marcaram presença na região. Vimos também o processo de produção espacial em Jerusalém, ou seja, como alguns povos, culturas e religiões modificaram a paisagem e o uso do território, apropriaram-se afetivamente do lugar e lá constituíram seus principais símbolos e elementos sagrados das três maiores religiões do mundo.

Neste texto, daremos continuidade à análise iniciada sobre o conflito. Investigaremos as principais mudanças na região de acordo com a cronologia histórica e com o contexto de poder conferido às potências neo-coloniais, sobretudo, no decorrer do século XIX.

O Século XIX: o neo-colonialismo e reestruturação territorial na I Guerra Mundial

O Oriente Médio sempre foi um caldeirão étnico. Esta realidade é o elemento que torna o estudo sobre esta região um processo árduo e de difícil apreensão, pois não há etnia que esteja fixa em um território continuamente. Em muitos casos, há uma mescla de povos, línguas, religiões e práticas culturais espalhadas por diversas regiões, as quais formam “uma colcha de retalhos” sem um padrão linear de povoamento.

Segundo o Professor Dr. Michael Izady (2015), cartógrafo e professor do Instituto de Tecnologia da Universidade de Nova York, a identificação cartográfica das diversas etnias que compõem o Oriente Médio normalmente não é correta ou precisamente detalhada em fontes de pesquisas feitas por ocidentais, pois sucessivamente tais mapas simplificam a diversidade étnica da região, elementos fundamentais para o entendimento da dinâmica médio-oriental.

O que normalmente ocorre é uma descrição rasa do conceito de etnia. Para Izady (2015), etnia se refere a uma identidade de grupo e esta, por sua vez, é um produto histórico. Ou seja, uma etnia não pode ser classificada com base em um único fator, tal como a língua, mas sim, é o resultado de um processo que coincide diversas categorias assim como língua, religião, modos de vida, história comum de sofrimento ou perseguição e, até mesmo, uma economia integrada. Em alguns casos, há a combinação de um ou mais fatores, em outros casos, somente um deles define uma etnia. Tais combinações estão precisamente caracterizadas no mapa abaixo, feito pelo professor, no qual se exemplificam as etnias originárias da região, compreendidas pela incidência de um ou mais critérios citados acima:

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Grupos étnicos do Oriente Médio. Desconsiderando as especificidades de cada subgrupo étnico, de forma geral, a visão ocidental costuma tratar esta diversidade em grandes grupos étnicos primários sendo a maioria “árabes”, em tons de amarelo; seguida por “persas” e “turcos”, respectivamente em tons alaranjados e esverdeados; minoritariamente, “curdos” e “azeris” (azerbaijanos), em tons de vinho e azul escuro. Outros grupos minoritários estão em cinza. Fonte: Dr. Michael Izady, http://www.gulf2000.columbia.ed/maps.shtml This map may not be reproduced without a written permission of Dr. Izady.

Portanto, mesmo que um determinado império, ao longo de séculos, estivesse presente política e militarmente em um território contínuo e extenso, nenhum império poderia ser entendido como etnicamente homogênico. Por diversas vezes e sob diversos domínios, os impérios que marcaram presença na região (Romano, Bizantino, Árabe, Cruzados e Turco-Otomano) tiveram conflitos internos sob motivações separatistas, justamente por se clamar pela soberania e independência de determinada etnia sobre outra, ou controle de determinada porção do território por determinado grupo étnico que a controlava.

Dessa forma, o controle político e militar sempre se manteve incerto para os impérios com o passar das décadas. As fronteiras apresentavam maior fluidez e as zonas de instabilidade eram consideravelmente superiores que o atual modelo político de Estado-nação vigente desde o século XX para cá. Insurgências, guerras e as tomadas de controle tinham, como maiores pressupostos, a identificação de grupos étnicos em comum, ou grupos com forte poder político, econômico e militar. Ao longo do século XIX, é possível se observar a dinâmica territorial de poder no Oriente Médio. Disponibilizamos uma série de mapas produzidos pelo professor Izady, os quais apresentam uma série histórica (1800; 1840; 1850 e 1875). Nesta série, verificam-se as mudanças nas fronteiras dos principais impérios, califados e emirados. É interessante notar que, embora determinadas áreas estejam teoricamente sobre o domínio de um império, na prática o controle era exercido por separatistas ou outros grupos paralelos ao poder imperial. Esses casos estão descritos com detalhes nos mapas abaixo:

Islamic_States_1800_sm
Estados Islâmicos, em 1800. Este mapa mostra, com precisão aproximada, o controle político-militar dos domínios administrativos no Oriente Médio. Detalhe para o Império Otomano, em vermelho, em cujas áreas nesta cor estavam efetivamente sob seu controle, nesta época. A borda vermelha maior (que engloba partes do Egito, Líbia, Tunísia, além da Arábia Saudita, Iraque, Síria e Turquia) representa áreas proclamadas pelo império por pertencer a ele, porém já fora de seu controle efetivo.  Fonte: Dr. Michael Izady, http://www.gulf2000.columbia.ed/maps.shtml  This map may not be reproduced without a written permission of Dr. Izady.
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Estados Islâmicos, em 1840. Este mapa detalha como, em 40 anos, as fronteiras se moveram na região. O Império Otomano, durante o século XIX, sofreu diversos levantes em seu território de grupos separatistas que clamavam por independência. Nesta época, grupos árabes (maioria presentes no Egito) dominaram a Palestina, partes da Síria e consideráveis áreas da Península Arábica. Mais uma vez, conchaves de identidade étnica, além de interesses políticos, militares e econômicos foram responsáveis pela diminuição significativa do domínio otomano na região, representado em vermelho. Fonte: Dr. Michael Izady, http://www.gulf2000.columbia.ed/maps.shtml  This map may not be reproduced without a written permission of Dr. Izady.
Islamic_States_1850_sm
Estados Islâmicos, em 1850. Incrível observar que, em 10 anos, as fronteiras mudaram completamente e representam, neste momento, a recuperação do domínio otomano sobre diversas áreas antes perdidas de seu controle, principalmente na Palestina até o Sinai, porções da Península Arábica e Mesopotâmia (onde atualmente é Iraque), todas em vermelho. Fonte: Dr. Michael Izady, http://www.gulf2000.columbia.ed/maps.shtml  This map may not be reproduced without a written permission of Dr. Izady.
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Estados Islâmicos, em 1875. No limiar do último quarto do século XIX, as fronteiras no Oriente Médio mais uma vez mostram-se alteradas. Neste período, embora tenha havido quase nenhuma grande diferença do domínio otomano em 25 anos, as manifestações de insurgências continuam e torna-se cada vez mais difícil e custoso manter sua extensão territorial intacta. Já em outros domínios muçulmanos, alguns impérios e emirados se agregam, outros se desagregam e perdem controle. Neste período, o domínio franco-britânico também se consolida na região, o qual irá futuramente estabelecer as novas fronteiras dos Estados modernos, que em nada (ou quase nada) representarão a realidade local – étnica, linguística ou religiosa. Fonte: Dr. Michael Izady, http://www.gulf2000.columbia.ed/maps.shtml  This map may not be reproduced without a written permission of Dr. Izady.

Embora o Império Turco-Otomano tenha chegado até o final do século XIX com seu território consolidado em amplas porções das penínsulas Anatólia (onde se encontra a Turquia atualmente) e Arábica, além de boa parte dos Bálcãs, na Europa; Mesopotâmia (onde atualmente é Iraque) e Palestina, no Oriente Médio; além de extensas porções da Líbia, no norte da África; estava cada vez mais custoso manter toda a estrutura de poder dentro de suas fronteiras.

Ademais, outro fator de ordem global começava a tomar forma e proporções na região. O mundo começa a adentrar em um novo paradigma neo-colonial moderno, cujos expoentes maiores são representados pelos Império Britânico e Francês, sobretudo na África. A expansão territorial dos europeus, com muito mais fôlego e poder, pressionava cada vez mais os otomanos. O Império Russo também incomodava devido a suas ambições expansionistas nas fronteiras ao norte dos turco-otomanos.

O processo de expansão imperialista europeu avançou sobre o continente africano e caracterizou-se por explorá-lo e partilhá-lo em diferentes territórios, os quais, futuramente, representariam Estados ainda sob o domínio e a influência dessas potências. A França, até este momento, já dominava grandes porções do Magreb (noroeste da África), sobretudo Marrocos e Argélia. Por sua vez, o Egito passava cada vez mais para o domínio inglês, o que representou uma grande conquista devido ao controle do Canal de Suez – importante rota de passagem para navios entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho. De certo modo, aproximava infinitamente o comércio marítimo europeu com o asiático.

As razões pelas quais se deram a partilha do Império Otomano pelos britânicos tiveram um contexto geopolítico particular. O Império Otomano representava ideologicamente, até o século XIX, uma potência árabe com base na ideia de integrar diversas nações islâmicas – os califados – em um único império. Ainda sim, os otomanos recebiam apoio de diversas nações islâmicas em outras localidades no planeta, contudo, isso não foi suficiente para assegurá-los de enfrentar as outras potências.

Por outro lado, manifestações nacionalistas espalharam-se pelo império, o que o levou a ter grandes perdas nos domínios dos Bálcãs, nas últimas décadas do século XIX. O fracasso dos otomanos começou a partir de então, pois iniciaram um processo de modernização do império como tentativa de recuperação e competitividade econômica. Este processo incluiu tanto um avanço industrial – com a implantação de ferrovias e linhas de telégrafos – quanto um avanço educacional e legislativo – abertura de universidades e escolas e a tentativa de se modificar o direito civil tornando-o laico e mais “ocidentalizado”, entre outras medidas.

I Guerra Mundial, Holocausto Armênio e colapso do Império Turco-Otomano

As tentativas de modernização e reforma se tornaram dívidas impagáveis para o governo otomano. O colapso do império foi inevitável, uma vez que o mesmo se tornou aliado da Alemanha, que era vista na época como ideal de modernização e industrialização. Esta aliança representou uma tomada de decisão que custaria a partilha do Império Otomano durante e após a Primeira Guerra Mundial, pois o mesmo posicionou-se ao lado da Tríplice Aliança (Império Alemão, Império Austro-Húngaro e, inicialmente, Itália), a qual foi derrotada pelas potências da Tríplice Entente (Império Russo, França, Reino Unido e, posteriormente, Estados Unidos)

A inconsistência do Império Otomano devido a suas diversas insurgências nacionalistas, além das tentativas fracassadas de modernização que lhe causaram endividamento, levou a consequências radicais e históricas no decorrer da Primeira Guerra para a população armênia. Os governantes turco-otomanos realizaram entre 1915 e 1923 o primeiro holocausto do século XX culminando na morte de, aproximadamente, 1,5 milhão de armênios, localizados a leste da Península Anatólia, norte da Síria e sul do Cáucaso. O episódio envolveu deportação em massa, genocídio em campos de concentração e experimentos biológicos.

A carnificina resultada do holocausto armênio e da Primeira Guerra Mundial eclodiu em uma crise humanitária e econômica que acabou definitivamente com o Império Turco-Otomano. Paralelamente ao farelamento do antigo império, os ingleses também conspiravam com algumas elites árabes afim de incentivar mais uma vez o nacionalismo árabe e facilitar o descontrole otomano. A oposição entre os árabes e os líderes otomanos, que ainda tentavam modernizar o império foi representada pelo rico Sharif Hussein, governante hereditário de Meca, cuja família se acreditava ser descendente do profeta Mohamed. Os britânicos estabeleceram relações com Hussein prometendo-lhe entregar uma grande nação árabe independente.

Entretanto, ainda em 1916, Inglaterra, França secretamente assinaram o acordo de Sykes-Picot, o qual posteriormente envolveu Rússia e Itália. Este acordo dividia os territórios remanescentes do Império Otomano de acordo com os interesses das nações vencedoras da Primeira Guerra Mundial afim de se expandir os territórios coloniais sob a pretensão de exploração econômica, tal como na África.

Todavia, conforme salienta o professor Izady (2010), tais pretensões coloniais europeias no Oriente Médio jamais vieram a ocorrer devido a entrada dos Estados Unidos na I Guerra Mundial no início de 1918. A influência norte-americana resultou na aplicação da Doutrina Wilson, a qual dava à região um caráter diferenciado, supervisionado pela então Liga das Nações. Dessa forma, esse sistema prevenia os impérios coloniais de realizar uma “total colonização” no Oriente Médio assim como havia ocorrido na África e Ásia. Na verdade, este episódio consolidou o poder e a influência dos Estados Unidos frente às antigas potências coloniais, descentralizando assim os eixos de decisão global sobre territórios no mundo, antes circunscritos somente à Europa.

Portanto, em função das áreas divididas secretamente pelo acordo de Sykes-Picot após o desmembramento do Império Otomano, a Liga das Nações delegou aos impérios coloniais vencedores a autorização para administrá-los mediante o sistema de mandatos. A França recebeu o mandato da Síria – que, posteriormente, dividiu seu território em dois Estados: Líbano e Síria; A Inglaterra recebeu o mandato do Iraque, Emirado da Transjordânia e Palestina; A Itália, por ter participado do acordo, recebeu os territórios da Líbia e Península Anatólia (Turquia); A Rússia, por sua vez, tornou-se comunista em 1917 e, por isso, passou a estar fora do processo de partilha do antigo Império Otomano. Os detalhes da partilha dos territórios estão mais precisamente demonstrados no mapa a seguir:

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O secreto acordo de Sykes-Picot pela partição do Império Turco-Otomano, em 1916. Detalhes do acordo definiam algumas limitações, como “Área A”, “Área B”, “Zona Vermelha”, “Zona Azul”, etc, afim de especificar quem teria o controle de qual área. Além disso, o acordo também estipulava a cooperação mútua entre os impérios colonizadores no sentido de permitir livre comércio de bens e serviços entre as regiões. Originalmente, o mapa foi traçado com pouca precisão, como se observa nos cantos direito e esquerdo da imagem. Este mapa atual foi construído com base em informações mais precisas do acordo e com um sistema moderno de mapeamento, esclarecendo-se, assim, por onde estariam tais fronteiras atualmente. Os territórios em azul (descritos como Área A) estariam sob mandato e influência francesa; A Área B, em verde-musgo, sob influência britânica; A Área Vermelha, sob mandato britânico direto; as áreas em verde, sob domínio italiano; as áreas em roxo, sob controle russo e, a maior parte da Palestina, como Área Internacional (Inglaterra, França e Rússia), excluindo-se o Porto de Haifa (Israel), sob controle britânico.  Fonte: Dr. Michael Izady, http://www.gulf2000.columbia.ed/maps.shtml  This map may not be reproduced without a written permission of Dr. Izady.

A esfera de influência das potências coloniais no Oriente Médio reconfiguraram as divisões políticas da região, cujas decisões estiveram todo o tempo alheias às características étnicas ou identitárias da população. Muito embora os traçados do acordo Sykes-Picot tentaram agrupar, em termos muito generalistas, alguns grupos culturais e religiosos em um mesmo território, o modelo estrangeiro de administração e exploração agravou tensões étnicas já muito complexas desde outrora. Adicionado a isto, agora sob mandato da Coroa Britânica, os ingleses garantiram ao Movimento Sionista na Europa a possibilidade de imigração para a Palestina por meio da Declaração de Balfour. Com isso, outro elemento agregava-se no disputado campo de forças do Oriente Médio.

Até as primeiras décadas do século XX, a região já começava a tomar a forma com as fronteiras que conhecemos atualmente. Os traçados retilíneos decididos pelos colonizadores deram origem a novos Estados-nação, independentes do mandato britânico, começando pelo Egito – em 1922 – seguindo pelo Iraque – em 1932. No entanto, a influência britânica continuou firme nos bastidores da política desses países, assim como diretamente nos demais territórios sob sua administração, conforme se verifica neste mapa representando o período de 1925:

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Estados Islâmicos, em 1925. Neste mapa é possível se deparar com algumas fronteiras mais familiares para nós, embora não totalmente definidas, comparando-se com o atual período. O Egito encontra-se independente (1922), muito embora permaneça sob influência britânica, sobretudo devido ao Canal de Suez e a suas reservas de petróleo e gás, fundamentais para companhias como Exxon Mobil, Anglo Iranian Oil, Royal Dutch Shell, entre outras. Fonte da imagem: Dr. Izady, http://www.gulf2000.columbia.ed/maps.shtml  This map may not be reproduced without a written permission of Dr. Izady.

O antigo Império Turco-Otomano, após perder na I Guerra Mundial e ter seus territórios partilhados por Inglaterra, França e Itália reduziu sua extensão consideravelmente, restringindo-se ao meio norte da Península Anatólia. Aproximadamente, desde 1919 a 1923, houve um intenso movimento nacionalista, resultando em um esforço conjunto de exércitos turcos e curdos na recuperação do território otomano perdido. A retomada de terra se deu contra o controle italiano, no sul da península, além de áreas sob o controle do mandato francês, a leste.

Em 1924, o movimento republicano ganha força e extingue oficialmente o califado otomano. Uma profunda reforma estrutural, liderada por Kemal Atatürk, dá início à República da Turquia. As mudanças foram além das estruturas políticas, pois o “pai dos turcos” – significado carinhoso de Atatürk – propôs uma intensa modernização, passando pela secularização das instituições públicas e a ocidentalização da língua turca, modificando os caracteres arábicos pelos latinos. O território turco estabelece definitivamente suas fronteiras conforme se verifica no mapa acima, em 1925.

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No próximo texto, continuaremos nossa análise aprofundando nos principais detalhes que marcaram o século XX e a eclosão real do conflito israelo-palestino. Até este ponto, fizemos questão de esclarecer o máximo possível o contexto histórico, social e cultural da região. Esses pressupostos são fundamentais para assimilar a complexidade dos conflitos.