A Sociedade do Espetáculo

O filósofo francês Guy Debord publicou a obra chamada “A Sociedade do Espetáculo” em 1967, pouco antes das agitações sociais que ocorreram em Paris em 1968, motivo que colaborou para o conhecimento e maior abrangência de seu livro. O livro compreende uma série de teses apresentadas em parágrafos ou versículos, fato que torna a leitura mais dinâmica que o comum do que outros livros. Algumas dessas teses – o primeiro capítulo – nós disponibilizaremos aqui abaixo para que o leitor possa ter acesso a alguns de seus conteúdos, no mesmo formato em que se encontra o livro, para quem sabe, tomar curiosidade pelo restante da obra.

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Imagem extraída do documentário “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord.

O que é bastante interessante é que Debord constrói uma crítica ao nosso modelo de sociedade atual – ainda que nos moldes dos anos 1960. A espetacularização analisada pelo autor trata-se de uma série de mecanismos de alienação da sociedade em meio ao seu processo de produção e consumo. As mercadorias adquiriram um valor simbólico e sígnico que carregam desejos e intencionalidades na indução ao consumo, ao passo que também a televisão e outros meios de comunicação estimulam mais ainda a alienação do sujeito aos processos produtivos atuais. Entretanto, Debord não limita sua crítica somente ao espetáculo da imagem da mercadoria no mundo capitalista, ele a estende para uma crítica ao espetáculo da imagem produzida pelo Estado, da ideologia, exibidas no então mundo socialista. Aprofundando-se em diversos conceitos marxistas, inclusive, o autor abarca em sua crítica análises e críticas desde o socialismo científico do século XIX, o anarquismo de Bakunin, Lênin, Trotsky e Stalin no decorrer do livro – importantíssimo também para setores da esquerda lerem e fazerem auto-críticas.

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Imagem extraída do documentário “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord.

Portanto, em termos gerais, esta obra continua absolutamente atual e útil para levar ao questionamento os modos de produção correntes em nossos dias, uma vez que os mesmos se intensificaram da época de Debord para cá. A sociedade do espetáculo encontra-se palpável em nossas mãos por meio das redes sociais, dos smart phones, das novas mídias informacionais. Mais do que nunca, inclusive, os modos de produção capitalistas nos separam da realidade, nos inserem em um mundo de alienações em imagens, um mundo de espetáculos rodeados pela esfera do consumismo supérfluo. Ressaltamos a necessidade de guardar o caráter dialético na leitura, pois em todo o processo há resistências, formas de negação da homogeneização, que resguardam a contradição nos fenômenos.

Para quem tiver maior interesse, a obra também existe em formato de documentário produzido pelo próprio Debord na época. O link para assistir com legendas em português encontra-se aqui. Esperamos que tenham todos e todas uma ótima leitura e boas reflexões.

Lucas Rocha

 

A Sociedade do Espetáculo

Por Guy Debord


Capítulo I – A separação consolidada

“Nosso tempo, sem dúvida… prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… O que é sagrado para ele, não passa de ilusão, pois a verdade está no profano. Ou seja, à medida que decresce a verdade a ilusão  aumenta, e o sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.”
Feuerbach – Prefácio à sefunda edição de A Essência do Cristianismo

 

(1) Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação.

(2) As imagens fluem desligadas de cada aspecto da vida e fundem-se num curso comum, de forma que a unidade da vida não mais pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente reflete em sua própria unidade geral um pseudo mundo à parte, objeto de pura contemplação. A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.

(3) O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada.

(4) O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizadas por imagens.

(5) O espetáculo não pode ser compreendido como abuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é a expressão de uma Weltanschauung, materialmente traduzida. É uma visão cristalizada do mundo.

(6) O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente na vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e no seu corolário – o consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação principal do tempo vivido fora da produção moderna.

(7) A própria separação faz parte da unidade do mundo, da práxis social global que cindiu em realidade e imagem. A prática social, diante da qual surge o espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao ponto de apresentar o espetáculo como sua finalidade. A linguagem do espetáculo é constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo o princípio e a finalidade última da produção.

(8) Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.

(9) No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento falso.

(10) O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências organizadas socialmente, que devem, eles próprias, serem reconhecidas na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível.

(11) Para descrever o espetáculo, a sua formação, as suas funções e as forças que tendem para a sua dissolução, é preciso distinguir seus elementos artificialmente inseparáveis. Ao analisar o espetáculo, fala-se em certa medida a própria linguagem do espetacular, no sentido de que se pisa no terreno metodológico desta sociedade que se exprime no espetáculo. Mas o espetáculo não significa outra coisa senão o sentido da prática total da formação econômico-social, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.

(12) O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.

(13) O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato dos seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.

(14) A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculista. No espetáculo da imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si mesmo.

(15) Na forma do indispensável adorno dos objetos hoje produzidos, na forma da exposição geral da racionalidade do sistema, e na forma de setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual.

(16) O espetáculo submete para si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores.

(17) A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer, de forma que todo o “ter” efetivo perde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim, toda a realidade individual se tornou social e diretamente dependente do poderio social obtido. Somente naquilo que ela não é, lhe é permitido aparecer.

(18) Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão, o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.

(19) O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da atividade dominada pelas categorias do ver, assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.

(20) A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica  espetacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre das vidas que se toma opaca e irrespirável. Ela já não reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraíso. O espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no interior do homem.

(21) À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que ao cabo não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.

(22) Destituída de seu poder prático, e permeada pelo império independente no espetáculo, a sociedade moderna permanece atomizada e em contradição consigo mesma.

(23) Mas é a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espetáculo. O espetáculo é, assim, uma atividade especializada que fala pelo conjunto das outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida, onde o mais moderno é também o mais arcaico.

(24) O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder no momento da sua gestão totalitária das condições de existência. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetáculo não é necessariamente um produto do desenvolvimento técnico do ponto de vista do desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, pelo contrário, uma formulação que escolhe o seu próprio conteúdo técnico. O espetáculo, considerado sob o aspecto restrito dos “meios de comunicação de massa” – sua manifestação superficial mais esmagadora – que aparentemente invade a sociedade como simples instrumentação, está longe da neutralidade, é a instrumentação mais conveniente ao seu auto-movimento total. As necessidades sociais da época em que se desenvolvem tais técnicas não podem encontrar satisfação senão pela sua mediação. A administração desta sociedade e todo o contrato entre os homens já não podem ser exercidos senão por intermédio deste poder de comunicação instantâneo, é por isso que  tal “comunicação” é essencialmente unilateral; sua concentração se traduz acumulando nas mãos da administração do sistema existente os meios que lhe permitem prosseguir administrando. A cisão do Estado moderno, a forma geral da cisão na sociedade, o produto da divisão do trabalho social e o órgão da dominação de classe.

(25) A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, constituiu a primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a ordenação cósmica e ontológica que correspondia aos interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a sociedade não podia fazer. Todo o poder separado foi pois espetacular, mas a adesão de todos a uma tal imagem imóvel não significava senão o reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da atividade social real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária. O espetáculo moderno exprime-se, pelo contrário, o que a sociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitido opõe-se absolutamente ao possível. O espetáculo é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência. Ele é o seu próprio produto, e ele próprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostra o que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento da produtividade por intermédio do refinamento incessante da divisão do trabalho na parcelarização dos gestos, desde então dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao longo deste movimento, no qual as forças que puderam crescer, separando-se, ainda não se reencontraram.

(26) Com a separação generalizada do trabalhador daquilo que ele produz perde-se todo o ponto de vista unitário sobre a atividade realizada, perde-se toda a comunicação pessoal direta entre os produtores. Na senda do progresso da acumulação dos produtos separados, e da concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se atribuições exclusivas da direção do sistema. O êxito do sistema econômico da separação significa a proletarização do mundo.

(27) O próprio êxito da produção separada enquanto produção do separado, experiência fundamental ligada às sociedades primitivas, desloca-se no pólo do desenvolvimento do sistema, para o não-trabalho, para a inatividade. Mas esta inatividade não é em nada liberta da atividade produtiva: depende desta, uma submissão inquieta e contemplativa às necessidades e aos resultados da produção; ela própria é um produto da sua racionalidade. Nela não pode haver liberdade fora da atividade. No quadro do espetáculo toda a atividade é negada, exatamente pela atividade real ter sido integralmente captada para a edificação global resultante. Assim, a atual “libertação do trabalho”, o aumento dos tempos livres, não é de modo algum libertação no trabalho, nem libertação de um mundo moldado por este trabalho. Nada da atividade roubada no trabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado.

(28) O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento fundamenta a técnica, e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das “multidões solitárias”. O espetáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.

(29) A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado.

(30) A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; Quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta.
Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma, porque o espetáculo está em toda a parte.

(31) O trabalhador não produz para si próprio, ele produz para um poder independente. O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se lhe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos  alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio.

(32) O espetáculo na sociedade representa concretamente uma fabricação de alienação. A expansão econômica é principalmente a expansão da produção industrial. O crescimento econômico, que cresce para si mesmo, não é outra coisa senão a alienação que constitui seu núcleo original.

(33) O homem alienado daquilo que produz, mesmo criando os detalhes do seu mundo, está separado dele. Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais se separa dela.

(34) O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem.

 

Referência: 

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Projeto Periferia, 2003. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf

 

 

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