Produção do espaço urbano e resistência indígena em La Paz – Bolívia

Por Lucas Rocha

Cara leitora e leitor,

Já fazia realmente um bom tempo que não postava mais no blog por diversos motivos, mas talvez o principal deles se refere à nova rotina em função das atividades no mestrado. De fato, a vida na pesquisa consome bastante tempo com muita leitura, discussões e escrita, mas também com aflições e angústias causadas pelo momento atual na política e na economia, os quais se refletem em falta de condições materiais para os pós-graduandos. Enfim, isto não significa o término desta atividade, porém, apenas como havia previsto, somente postagens com um tempo mais amplo entre uma e outra, na medida em que puder, sem pressa.

A vida acadêmica também me trouxe novas possibilidades como poder comparecer ao Encontro de Geógrafos da América Latina – EGAL 2017 – evento que se deu em La Paz, na Bolívia, durante alguns dias do mês de Abril. Nesta oportunidade, aproveitei para chegar uns dias antes e conhecer um pouco mais da cidade e seu entorno e assim, ampliar um pouco mais o arcabouço cultural sobre nossos irmãos sul-americanos. Para minha surpresa, em poucos dias aprendi muito sobre a Bolívia! A convivência com este povo (ou estes povos) me fez desconstruir muitos preconceitos e reconstruir um olhar de profundo respeito e admiração.

O texto que quero abordar aqui traz uma contribuição em alguns desses aspectos voltados para a observação da paisagem de La Paz e inferências sobre a recente produção de seu espaço urbano. Já havia desejado escrevê-lo logo assim que voltei de viagem, porém os compromissos me fizeram estabelecer outras prioridades, no entanto, um texto que li sobre a Nova Arquitetura Andina na Bolívia me fez recordar dessas imagens existentes na cidade, das formas e da beleza escondida em meio à predominância monocromática alaranjada da extensa periferia.

Ao se chegar, pousa-se no Aeroporto de La Paz, que fica no bairro de El Alto, a 4050 m de altitude! Embora os efeitos no organismo sejam incômodos aos que não estão acostumados, a observação da paisagem chama mais a atenção no trajeto feito do aeroporto em direção ao centro da cidade, que fica a pouco mais de 3000 m de altitude. Uma descida íngreme de quase 1000 metros e sua total ocupação habitacional são marcantes aos turistas.

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Vista da periferia de La Paz de dentro da Linha Vermelha do Teleférico, aproximando-se do Centro “antigo” da capital boliviana, porém, nem sequer na metade do trajeto ainda até a próxima estação. A diferença topográfica varia cerca de 1000 m entre os pontos mais alto e baixo da cidade. (Foto: Lucas Rocha, Abril de 2017)

Uma das primeiras impressões causadas nos turistas, creio que especialmente aos brasileiros acostumados às imagens famosas das favelas que encobrem os morros no Rio de Janeiro e em diversas outras localidades do Brasil, é de que tudo isto se trata de uma imensa favela. Este pensamento está, contudo, fortemente equivocado! Evidente que há favelas – ou melhor dizendo, ocupações que denotam graus avançados de vulnerabilidade socioambiental – porém, a simples observação da forma das casas sem reboco e alocadas em encostas tão íngremes não as caracteriza enquanto favela.

A constituição das favelas comumente presente nas grandes cidades latino-americanas são as expressões sócio-territoriais da desigualdade, pois são desprovidas/pouco providas das infraestruturas básicas urbanas. Além disso, as próprias construções são precárias e improvisadas, o que confere um caráter simples na forma das construções nestes espaços. Diferente do que se observa nas favelas, em muitas das construções vistas na periferia de La Paz, observa-se que há certos traços arquitetônicos que denotam uma vontade de arrojamento, de ousadia, por meio da construção de formas com um desenho único, curvas ou linhas retas estritamente projetadas e símbolos como a Cruz Andina, vista em janelas ou impressas na parede. Portanto, não são construções improvisadas ou precarizadas, mas o que há aqui é o reflexo da regulação do território em La Paz, que prevê um imposto mais caro àqueles edifícios com acabamento – fato que resulta em grande parte dessas construções terminarem ainda na fase de alvenaria à mostra.

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Um impasse tributário: o reboco dos prédios resultam em uma cobrança maior de impostos, fato que desestimula grande parte dos moradores da periferia de La Paz a darem os acabamentos nos edifícios, dando um efeito monocromático alaranjado na paisagem. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

La Paz é uma cidade extremamente desigual, assim como diversas outras capitais sul-americanas. Tal como sua grande diferença topográfica, a sociedade que usa e produz aquele território também se apresenta desta mesma maneira. A observação da paisagem, dessa forma, é bastante marcante na medida em que se passa da periferia para o Centro tradicional antigo da cidade e, posteriormente, para as áreas das novas centralidades ao sul da capital. Neste ponto, a arquitetura também reflete a fragmentação do espaço urbano, passando de diversos prédios neo-clássicos e barrocos para prédios modernos e altos.

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Caminhando na direção do Centro à Zona Sul: o vetor da centralidade econômica de La Paz. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

Observa-se também a predominância pelo uso do modal rodoviarista, sobretudo automóveis particulares na cidade toda, mas também, muitos micro-ônibus e vans. Carros, vans, micro-ônibus e ônibus: todos disputam cada milímetro do viário urbano como gladiadores. Curiosamente, pouquíssimas motos. O uso das buzinas é frequente e cotidiano, fato que incomoda bastante aos que não convivem com tamanho excesso – assim como a grande emissão de CO2 pelos carros antigos – são problemas sócio-ambientais bastante desafiadores para La Paz.

Não obstante, a capital boliviana apresenta não só desigualdades ou problemas urbanos e ambientais. La Paz tem uma dinâmica própria, uma especificidade capaz de entusiasmar quem a conhece de peito aberto, expresso pela carinhosa recepção e acolhimento dos bolivianos, pelas suas manifestações culturais e artísticas e pela resiliência e resistência dos povos andinos em manter suas tradições e seu orgulho.

Este resgate às raízes andinas foi percebido em minha ida a Tiwanaku, atual sítio arqueológico onde se deu a ascensão do Império Tiwanaku (civilização pré-Inca), já com altíssimo grau de técnicas de construção e engenharia, além de uma forte relação com a natureza – forma das divindades tiwanacotas.  Esta localidade fica a cerca de 76 km a oeste de La Paz e é considerada como a capital política e espiritual da Cultura Tiwanaku, havendo inclusive uma relação geográfica com outras localizações importantes do Império, formando um eixo perfeito que liga Potosí e Oruro a sudeste e Isla del Sol, Pucara, Cuzco, Vitos até Tumbes (as três últimas em território peruano), formando a Rota de Viracocha.

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Detalhe do painel de informações encontrado na entrada do sítio arqueológico de Tiwanaku – Bolívia, mostrando sua localização no tempo e sua importância geográfica, política e espiritual para este povo. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

É em Tiwanaku que se expressa o desenvolvimento tecnológico mais notável da história pré-colombiana do continente sul-americano, herança que foi passada para os Incas no decorrer de seu domínio político e marcou profundamente os traços culturais, artísticos e religiosos dos povos indígenas descendentes, sobretudo os Aymaras, originários dos altiplanos andinos. Esta centralidade política e religiosa abriga ainda hoje um conjunto de templos, os quais eram atribuídos aos reino dos céus, reino da terra e o reino das profundezas. Por isso, um templo se projetava para cima como pirâmide, outro na superfície e outro abaixo da superfície.

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Uma das principais visões em Tiwanaku, observando-se um templo semi-subterrâneo, onde se encontram alguns monólitos esculpidos no centro e nas paredes em forma de diversas cabeças. Em segundo plano, o Templo Kalasasaya e sua notável geometria em que se vê Pachamama de frente. Há também a Porta do Sol, outro monólito esculpido perfeitamente retilíneo. Não há ainda uma explicação, mas estima-se que se trata de um calendário. Quando aos demais elementos do pátio, o mistério prevalece. (Foto: http://www.lapazlife.com/places/tiwanaku-tiahuanaco/)

As formas entalhadas em monólitos de diversos tamanhos simbolizavam divindades atribuídas aos animais comuns da região como o puma, o condor, a lhama, a coruja, entre outros. Da mesma maneira, a forma feminina estava atribuída à figura da máxima divindade tiwanakota – a Pachamama – como uma espécie de Deusa Mãe-Terra, simbolizava a fertilidade e a vida. Ademais, um vasto conhecimento astronômico também estava expresso por meio de formas artísticas e divinas do Sol, da Lua, e das estrelas, além da composição de um complexo calendário lunar.

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Cartaz de celebração do Ano Novo Aymara (ano 5.523 – ano 2015 d.C.). Tiwanaku mantém-se como centro espiritual e cultural da cultura Andina. Detalhe para as formas e as cores expressas nas roupas típicas – traços do orgulho andino. (Fonte: Governación de La Paz – Twitter).

Tudo isso: os templos construídos com avançadíssima tecnologia para a época com encaixes retilíneos de blocos monolíticos pesadíssimos, as figuras divinas também talhadas em blocos únicos de rocha basáltica extraídas dos vulcões próximos ao Titicaca, estão todas marcadas com abundantes formas retas assimetricamente desenhadas. Da mesma maneira, os vestuários tradicionais indígenas marcam estes padrões de linhas assimétricas e formas bem calculadas, também abundante em cores e tons. Estes são os principais elementos artísticos e culturais que representam o pujante passado andino, motivo de orgulho aos Aymaras e demais povos indígenas que se espalham desde o Equador, Peru, Bolívia e norte do Chile.

De fato, a Bolívia tem vivenciado os últimos séculos mediante diversos processos de dominação política e econômica bastante violentos. O país que, somente em sua história republicana, foi vítima de 200 golpes de estado, cujo atual território não possui saída para o mar – fator que contribui para as dificuldades de comércio exterior e que, também é motivo de um dos principais conflitos geopolíticos da América do Sul, tem a pobreza e a resistência pela vida como uma característica intrínseca.

Inegável foram os efeitos da mudança política atribuída à ascensão de Evo Morales à presidência da Bolívia, em 2006. Pela primeira vez na história boliviana, este país de extensa maioria indígena elege um de seus representantes para o maior cargo do executivo político e a representatividade importa! A Bolívia passou a ser o primeiro país no mundo a se reconhecer enquanto um Estado Plurinacional Comunitário Multicultural, o que dá um caráter inédito em termos de governança e planejamento territorial, mas sobretudo, empoderamento às dezenas de diferentes nações indígenas que compõem o território.

As mudanças refletidas no espaço urbano também são muitas. Para não tornar a leitura cansativa, detenho-me ao exemplo mais notável em La Paz – a revolução na mobilidade urbana que significou a instalação dos teleféricos. Um investimento feito com poucos recursos – se comparado a malhas de metrô ou trens – porém com alta tecnologia e segurança, bastante conveniente inclusive para a própria topografia marcante da cidade. Os teleféricos se dividem em várias linhas que ligam bairros periféricos aos centrais de maneira rápida e confortável. Ainda em construção atualmente, a rede expande-se para localidades mais pobres, onde a necessidade e as distâncias são maiores. As estações são o que há de melhor, dotadas de serviços desde comidas rápidas, pequenos restaurantes e mercados, caixas eletrônicos e alguns escritórios, são comparáveis às estações da moderna Linha Amarela do Metrô de São Paulo, não em questão de tamanho – evidentemente – mas em limpeza, arquitetura, tecnologia e organização.

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Entrada da Estação Waña Jawira, da Linha Azul. Detalhe para um dos escritórios da empresa estatal Entel, administradora dos teleféricos. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

Transportar-se por meio de teleférico sobre o tecido urbano de La Paz é uma oportunidade única de observar com detalhes e calmamente a conformação da cidade, suas formas, a fragmentação e articulação de seu espaço, sua extensão, seus fluxos e mesmo seu incrível horizonte formado pelos picos nevados da Cordilheira dos Andes.

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Vista de uma parte de El Alto sobre o teleférico da Linha Azul. Detalhe para as formas arquitetônicas andinas de Mamani, explicadas abaixo no texto. O transporte de teleférico é uma ótima oportunidade de visualizar a estrutura urbana e os fluxos da cidade. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

A observação pelo teleférico sobre o bairro periférico de El Alto chama a atenção, pois em meio à predominância alaranjada das construções sem reboco, alguns prédios com um notável acabamento se destacam na paisagem. Trata-se de um elemento novo e pujante na arquitetura boliviana que busca construir uma identidade arquitetônica aymara. Tais prédios são facilmente notados por suas formas muito particulares, seus desenhos simétricos e suas cores vibrantes.

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Paisagem em El Alto, La Paz. Detalhe para os poucos prédios acabados com arquitetura aymara em meio à monocromia alaranjada do tecido urbano construído. O horizonte é estonteante com a vista das montanhas nevadas na Cordilheira Andina. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

Freddy Mamani é o criador deste estilo que vem se destacando na paisagem de La Paz. O ex-pedreiro tornou-se engenheiro e construtor civil e rompeu barreiras ao propor algo de novo às construções bolivianas, um estilo que fosse genuinamente representante do orgulho andino, representando suas formas, seus traçados e suas cores. Algo que se destacasse em meio à monocromia da periferia. Desta forma, conseguiu-se estabelecer algo que valorizasse o orgulho aymara, pois suas construções são planejadas para serem imponentes de modo a resgatar a imponência das construções tiwanakas antigas como novos elementos da paisagem urbana da capital boliviana.

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Vista do teleférico para dois prédios acabados com o típico estilo arquitetônico andino aymara introduzido por Mamani, em El Alto, La Paz. (Foto: Lucas Rocha/ Abril de 2017)

A maioria de seus prédios possuem um amplo espaço voltado para salão de festas bastante colorido e imponente. Justamente, em vista dos processos que conformaram a cidade tal como é, não havia até então se pensado em locais próprios para celebrações aymaras, as quais costumam ser bastante recorrentes em suas manifestações comunitárias. Portanto, Mamani inseriu este modelo que aproveita o espaço da construção como local para festas no térreo e, nos pavimentos superiores, escritórios e a casa do proprietário no último pavimento.

A resistência e o empoderamento aymara também se deu na disputa pela prevalência de formas arquitetônicas andinas na paisagem de La Paz. Desde seu início, enfrentou (e enfrenta) forte oposição na academia, sendo deslegitimado por muitos dos principais arquitetos bolivianos. A oposição enfrentada por Mamani pode ser interpretada como fatores de classismo e racismo, expressões de ódio muito marcantes na sociedade boliviana, dado que a elite local, antes dominadora também da política, é majoritariamente branca e eurocêntrica, despreza os traços culturais e artísticos andinos.

Visto que boa parcela da comunidade acadêmica de arquitetos é composta por esta elite – dadas às dificuldades sociais de ingresso ao nível superior – Mamani conclui que, historicamente, as reproduções arquitetônicas em La Paz são influenciadas pelos modelos hegemônicos ocidentais, portanto são formas que não dialogam com as comunidades locais, tampouco com a cultura e a arte andina. Além disso, Mamani sente que devido à sua origem étnica aymara e o fato de sua formação não ser propriamente na Arquitetura, colaboram para a oposição feita ao seu estilo.

Os povos bolivianos possuem diversos elementos que são dignos de muito orgulho e admiração. No entanto, diversos processos históricos de dominação e exploração resultaram em uma das condições de pobreza e desigualdade social mais marcantes de nosso continente, com reflexos notáveis na paisagem de La Paz, a capital do Estado Plurinacional da Bolívia. Ainda assim, o espaço urbano da capital é palco de lutas e oposições inclusive no campo das formas arquitetônicas e o caso de Freddy Mamani é particularmente simbólico, pois se trata também de uma disputa do espaço urbano que perpassa imagens e signos culturais e artísticos de um povo cujo histórico é de opressão, mas que carrega em seu cotidiano manifestações de resistência e vida.

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Referências interessantes para consulta: