Geocrítica do conflito árabe-israelense: parte 1

Por Lucas Rocha

O conflito entre Israel e Palestina desponta no século XX como um dos mais duradouros e complexos da humanidade. Neste caso, como poderíamos utilizar a Geografia como base de análise para melhor compreender esta situação? Por que, mesmo após décadas, noticiamos levantes sangrentos e grandes rebeliões neste pedaço tão pequeno de terra? Quais são os elementos e os agentes que estão envolvidos no passado e no presente para resultar neste cenário? As respostas para estas questões exigem um esforço de entendimento geográfico e uma profunda contextualização histórica.

The GeoSphere Project - Middle East
Oriente Médio, região de passagem entre o nordeste da África, sudoeste da Ásia e sul/ sudeste da Europa. Imagem com destaque para a Península Arábica. Fonte: The GeoSphere Project – Middle East — Image by © Tom Van Sant/CORBIS

A princípio, não podemos analisar a situação de forma maniqueísta, ou seja, reduzir a complexidade das relações em termos simples como se houvesse só um lado bom e outro ruim, ou um lado certo e o outro errado, pois a História relata diferentes agentes que atuaram na região com diferentes interesses e poderes, portanto o que vemos hoje é resultado dessa gama de forças com necessidades distintas, agindo de forma desigual em cada porção do território.

Afim de manter uma proposta de abordagem do assunto que mantivesse o aprofundamento necessário desejado, mas, ao mesmo tempo, que não fosse cansativo e massante em um só texto, decidi dividi-lo em algumas etapas temáticas e deixá-lo mais leve e interessante. A sequência dos textos ficará exposta nos títulos para que o leitor ou a leitora siga a trajetória de conteúdos na ordem proposta.

Contextualização histórica da Palestina e as Diásporas Judaicas

A região conhecida como Palestina está localizada próximo ao entroncamento entre os três velhos continentes, ou seja, é uma região de passagem para quem transita entre o norte da África, sudoeste asiático e, de certa forma, o sul da Europa. Deste modo, esta região já fora ocupada e povoada desde o início das primeiras civilizações humanas e, por estar localizada em um cruzamento de rotas, sempre foi alvo de disputas de guerra em função de sua importância estratégica.

Segundo relatos bíblicos, Canaã era ocupada por povos fenícios, bastante conhecidos pela suas habilidades com a pesca e o comércio no Mediterrâneo. O sistema linguístico dos fenícios também era bastante desenvolvido e foi uma das maiores influências da escrita greco-romana, a qual, posteriormente, iria fundamentar as bases de nossas línguas atuais. Conta a bíblia que o povo hebreu conquistou o território por meio de guerras e lá estabeleceu seus reinados e sua cultura. Um dos principais reinados foi atribuído ao Rei Davi, responsável por uma expansão significativa do território em comparação com seu antecessor, o Rei Saul. Davi iniciou a construção do Templo de Jerusalém, o qual foi finalizada por seu filho Rei Salomão e, até hoje, há um resquício de uma das paredes do templo, considerado atualmente o local mais sagrado do judaísmo.

O domínio hebreu, porém, não foi duradouro. Ao longo da Antiguidade Clássica, a região foi ocupada por outros impérios tais como os babilônios, os persas, os gregos e, posteriormente, os romanos. A conquista dos Babilônios, durante o século VI a.C., foi conhecida como a Primeira Diáspora, pois levou o povo judeu em cativeiro para a Mesopotâmia, onde lá permaneceu por décadas e se estabeleceu. Somente durante após a conquista da região pelo Império Persa, o imperador Ciro permitiu o regresso, no qual somente uma parcela da população optou por fazê-lo, mantendo sua cultura e tradições, assim como tomando posse de suas cidades e monumentos.

O período de dominação do Império Romano, no século I d.C., representou um dos principais marcos da humanidade, pois é nesta época que surge o cristianismo. Esta religião foi perseguida nos seus primeiros momentos devido ao caráter libertário das ideias de Jesus Cristo em conflito com os dogmas judaicos e os paradigmas de poder dos romanos de então. Entretanto, o cristianismo, desde sua concepção, teve por característica o trabalho missionário de evangelização, o que lhe permitiu uma rápida expansão no decorrer das primeiras décadas ao longo de algumas localidades do Mar Mediterrâneo.

Um fator de grande importância, ainda ao longo do século I, foi a Segunda Diáspora Judaica, cujo o grande responsável foi próprio Império Romano ao destruir Jerusalém (e com ela o Templo de Salomão), em 70 d.C. Diante deste evento, houve uma dispersão em massa de judeus para diversas outras nações, alguns seguiram em direção a África, muitos dos quais se estabeleceram na região onde atualmente é a Etiópia (Beta Israel). Outros foram para o leste rumo à Península Arábica, outros para o meio-sul da Ásia (onde atualmente é Irã, Paquistão e Índia) e até a China. Muitos outros dispersaram-se em direção oposta, norte da África e Península Ibérica (chamados sefardim) e norte da Europa (ashkenazim).

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O mapa, elaborado por um usuário Wikipedia, esclarece um pouco melhor a dimensão da Segunda Diáspora Judaica, classificando por cores as diferentes “sub-etnias” de judeus estabelecidas nessas localidades por volta de 1490. Beta-Israel, classificado em amarelo, compreendia diversas localidades ao longo da Etiópia; Judeus Sefaradim, em vermelho, no norte da África, Portugal e Espanha; Judeus Ashkenazim, no norte da Europa; além de diversas outras comunidades nos três continentes.

De fato, é inestimável o terror de um povo que é motivado a sair de sua terra por questões de sobrevivência. A dispersão provocada pela segunda diáspora não dividiu igualmente os agrupamentos de judeus para cada direção. Alguns grupos se concentraram em maior número em alguns lugares do que em outros, mas de qualquer forma, comunidades judaicas foram estabelecidas em diferentes nações em todo o mundo. Um número muito pequeno de judeus permaneceu na Palestina e continuou lá sua vida e tradição.

Curiosamente, os judeus dificilmente deixaram suas tradições, religião e costumes. Mesmo estando em nações diferentes, muitos deles continuaram o legado de suas tradições e línguas, dado que lhes davam destaque nas sociedades onde se estabeleciam. Na Palestina, os judeus que lá permaneceram, continuaram a praticar seus hábitos culturais e religiosos, entretanto, tornaram-se minoria étnica. Do lugar sagrado do judaísmo só restara uma das paredes, a qual passou a ser o foco de maior valor simbólico desta religião, representando o que, um dia, já foi o principal ícone do poder hebreu.

O cristianismo, por sua vez, não deixou de crescer. De religião perseguida pelo império, o cristianismo chegou ao poder por meio da conversão de Constantino, no século IV, o qual estipulou a mesma como a religião oficial do Império Romano. Dali em diante, a história do ocidente mudaria para uma nova etapa com influências até hoje em dia. Com a expansão e a influência política do cristianismo ainda durante o Império Romano, os lugares de importância simbólica do judaísmo passaram a ser também significativos para os cristãos. Além disso, os lugares onde se deram as principais narrativas sobre Jesus Cristo tornaram-se sagrados para a religião oficial do império, fato que deu à Palestina um caráter especial para judeus e cristãos.

A influência cristã e romana na região manteve-se até, aproximadamente meados do século VII, momento em que o islamismo recém surgido expandia-se para a Palestina. É interessante notar que, tal como o cristianismo, o islamismo teve um rápido crescimento territorial. Ainda no início do século VII, o Império Bizantino (resultado da divisão do Império Romano do Oriente) apresentava sinais de enfraquecimento de seu controle e, definitivamente, perdeu a região para os árabes muçulmanos nessa época.

A conquista muçulmana de Jerusalém teve um sentido simbólico maior para os islâmicos, pois, segundo o islamismo, o profeta Mohamed (Maomé) teria feito uma viagem de Meca a Jerusalém e, na localização onde se encontra o Domo da Rocha, ele teria subido aos céus e se encontrado com os profetas Jesus e Moisés. O Domo da Rocha foi construído pelos árabes a partir do século VII, juntamente com a mesquita de Al Aqsa, um dos lugares mais sagrados do islamismo e, coincidentemente, no mesmo lugar sagrado do judaísmo onde era o Templo de Salomão, destruído aproximadamente 600 anos antes. Ainda neste mesmo local, segundo os judeus, Abraão quase teria sacrificado seu filho Isaque como um ato de fé em Deus. Logo, este representa o ponto de intersecção mais sagrado para as três maiores religiões monoteístas do mundo, atualmente, como se visualiza na imagem a seguir:

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A imagem atual mostra exatamente o ponto mais sensível de Jerusalém, simbolicamente falando. “Western of Wailing Wall” é o Muro das Lamentações, último resquício do antigo Templo de Salomão; o complexo que envolve a Mesquita de Al Aqsa e o Domo da Rocha “Dome of the Rock” fazem parte do Nobre Santuário, sagrado para os muçulmanos, ou para os judeus, o Monte do Templo. Fonte: BBC News, Junho/ 2015.

Jerusalém adquire, portanto, um sentido simbólico de extremo valor religioso, cultural e histórico para judeus, cristãos e muçulmanos. Na medida em que as influências político-militares, econômicas e religiosas se apropriaram do território ao longo da História, deixaram suas marcas, seus legados e símbolos. Imprimiram àquele território suas influências, objetos e formas, cuja disputa creio eu não existir similar em todo o mundo até hoje.

O domínio e influência árabe na região consolidou-se ao longo dos séculos posteriores. Mesmo após a tomada da região pelos turco-otomanos, no começo do século XVI, não significou muita diferença no modo de vida e nas práticas das tradições religiosas de árabes, cristãos e judeus na Palestina, pelo contrário, a religião oficial do Império Turco-Otomano era o islamismo e mesmo a linguagem usada era a árabe. Sob este domínio, a Palestina manteve-se por séculos adiante mergulhada em um modo de vida feudal, exceto por alguns grupos de nômades beduínos.

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No próximo texto, abordaremos os processos de dominação dos territórios do Oriente Médio pelas potências coloniais europeias e as alianças geoestratéticas ao longo do século XIX e início do século XX, que foram decisivas na I Guerra Mundial e fomentaram as bases de um dos conflitos mais complexos da História.

A Geografia da Ginástica e Musculação

Por Lucas Rocha

 

Ao se ler o título você deve se perguntar: “mas que raios tem a ver Geografia com ginástica e musculação?” e eu te digo: bastante coisa! Este é um assunto que me interessa muito, pois fiz questão de estudá-lo para minha pesquisa final de graduação. No caso, vários aspectos que envolvem a complexidade das dinâmicas sociais e territoriais estão envolvidas neste tema e resultam, materialmente, na paisagem (sobretudo urbana) e no nosso dia-a-dia.

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Academia de ginástica. Suando em prol da saúde e vitalidade. Imagem: “www.localfitness.com.au”

Bom, digamos que você seja jovem ou adulto e esteja lendo este artigo. Você já sentiu a necessidade de ir para uma academia? Você já quis ver em você mesmo o corpo que você observa sempre na mídia, com formas bem definidas, esbanjando saúde e vitalidade? E você já reparou que atualmente existem uma série de opções de academias, com inúmeros preços, pacotes especiais, facilidades de crédito e um número significativo de unidades, talvez mais perto de sua casa ou de seu trabalho ou de sua faculdade? Pois é, se você se identificou com algumas dessas perguntas, convido-te a entender um pouco mais sobre o que está por trás disso tudo.

Como se deu o boom de academias?

Primeiro, se analisarmos a história, ou mesmo, para os mais velhos, se puxarmos na memória, lembraremos que, até algum tempo atrás, não existiam tantas academias de ginástica e musculação na cidade. Os primeiros registros sobre a existência de academias em São Paulo, por exemplo, datam de meados da década de 1930 (ANTUNES, 2009; QUELHAS, 2011). Ainda sim, eram poucas, de certa forma ficavam meio escondidas, pois eram espaços frequentados por caras “mal encarados” ou que tinham uma certa rotina ligada ao cotidiano dos esportes. Eram equipamentos improvisados e, às vezes, a maioria delas eram meio sujas, ou não davam tanto valor à estética arquitetônica. Algumas um pouco melhor, outras um tanto pior, mas definitivamente não eram muitas. Então, o que houve nesses últimos tempos para acontecer um verdadeiro boom de academias?!

Para entendermos melhor, é necessário “dividir” nossa análise em aspectos gerais desse período de aumento de academias, assim teremos uma noção mais clara sobre características fundamentais do nosso tempo:

  • Aspecto Político: de forma geral, se analisarmos a história recente do Brasil, podemos constatar que passamos a vivenciar, a partir da década de 1990, a construção de um período democrático de nossa nação. Isso significa que, não somente as pessoas, mas também as instituições e empresas passaram a ter maior autonomia política sobre suas decisões; Adentramos em um tipo de governabilidade que absorveu alguns ideais neoliberais em sua política, ou seja, começamos a fomentar um ambiente de mercado menos regulado que outrora na história, o que facilitou também a inserção definitiva do Brasil na era da globalização;
  • Aspecto Econômico: foi ao longo da década de 1990 que o Brasil finalmente pode superar a crise vivida na década anterior e estabilizar a inflação através da implantação do Plano Real. Este cenário foi fundamental para se criar condições de estabelecer, a partir da década de 2000, políticas de diminuição da desigualdade social (sobretudo da pobreza extrema) e também facilitou a expansão do crédito pessoal para a classe trabalhadora. Neste processo, o consumo e a produção foram incentivados na sociedade; Outros aspectos são relacionados à escala das cidades, pois, por exemplo, em metrópoles como São Paulo, já desde a década de 1970, o modelo econômico passava por transição de uma matriz industrial (secundário) para incorporar uma matriz terciária, ligada ao comércio e aos serviços na cidade (SANTOS, 2009);
  • Aspecto Social: as relações de trabalho tiveram alterações ao longo da história e essas alterações estão relacionadas intrinsecamente com o local onde o trabalhador se encontra. Ou seja, em cidades como São Paulo, cujo município deixou de ser industrial para tornar-se mais voltado ao comércio e serviços, a relação do corpo com o trabalho mudou: antes na indústria o trabalho braçal e dinâmico era mais comum, atualmente, dependendo do tipo de serviço e comércio, muitas pessoas apresentam um comportamento sedentário, passando, no mínimo, 8 horas por dia sentadas em frente ao computador. Sem falar nas facilidades que o avanço tecnológico trouxe e, com eles, também a contribuição de um comportamento sedentário, tais como o automóvel, a televisão e o computador, por exemplo, muito mais acessíveis do que antes (TRINCA, 2006). Além disso, práticas alimentares muito mais “industrializadas” se tornaram mais frequentes em grandes cidades em meio a um cotidiano urbano, sempre corrido. A praticidade de alimentos pré-prontos, alimentos industrializados, os quais apresentam altos teores calóricos, tornaram-se hábito para a população (GARCIA, 2003), portanto, “doenças do século XXI” como o stress, ou relacionadas à obesidade e ao funcionamento cardíaco, se relacionam nessa nova dinâmica (TRINCA, 2006); Outra instância social que merece destaque neste cenário é a mudança do paradigma tecnológico do final do século XX, mais especificamente relacionados ao avanço da tecnologia da informação. Além dos meios tradicionais de informação, tais como jornais e revistas, a informação passa a circular no território de maneira mais fluida e digital, através dos sinais de televisão e rádio e, sobretudo, capilarmente através da internet. A telefonia móvel também teve papel fundamental em consolidar a integração informacional do território (CASTELLS, 1999);
  • Aspectos culturais: esse conjunto de mudanças aconteceu de modo contínuo e todos os aspectos estão envolvidos de forma interseccional. Curiosamente, os cientistas sociais e filósofos constataram o crescimento e a difusão de valores como o individualismo – a busca pela satisfação de interesses pessoais em primeiro lugar – nas sociedades contemporâneas urbanas. Muito se deve a um acirrado ambiente competitivo de trabalho que o sistema capitalista promove afim dos mais produtivos se destacarem, eliminando a concorrência e garantindo a sobrevivência. Outro valor bastante fomentado neste cenário é o hedonismo – a busca pela satisfação imediata de prazeres pessoais – o que de certa forma está ligado ao individualismo, porém adentra em uma instância mais pessoal de prazer, pode ser o prazer sexual, o prazer gustativo, um prazer esportivo, qualquer coisa que satisfaça imediatamente o desejo pessoal. Neste meio, surge um valor central na nossa análise: o culto ao corpo – ou seja, a atribuição de um valor simbólico à imagem estética idealizada do corpo humano, sendo, portanto, um objetivo a ser atingido na busca do prazer pessoal e da aceitação social (CASTRO, 2007; LIPOVETSKY, 2004; 2007); Outros aspectos culturais que permeiam este ambiente são valores atribuídos e incorporados ao consumismo, fomentados através das ferramentas da publicidade e da propaganda, as quais associam necessidades (reais ou criadas) ao consumo de determinadas marcas, o que lhe garante, só através da compra de tais marcas ou na utilização de tais serviços, em realização pessoal e status, fundamentais para a aceitação social (CASTRO, 2007; LIPOVETSKY, 2007);

Como foi citado anteriormente, todos os aspectos apresentados se realizam no período contemporâneo de forma interseccional, ou seja, todos eles se apresentam em conjunto, sobretudo no meio urbano em sociedades capitalistas. Evidentemente que a complexidade de qualquer sociedade não permite dizer que todas os habitantes de determinada cidade são do mesmo jeito e se comportam com os mesmos padrões. Os aspectos são mais ou menos presentes na vida particular de cada pessoa em função de sua construção e classe social, arcabouço cultural e experiência de mundo.

Entretanto, o que valida esta análise é o fato de que tal comportamento, ou mesmo a incidência desses diversos fatores associados ao cotidiano estão, de fato, presentes na vida da maioria das pessoas nas cidades brasileiras, o que leva ao Brasil ocupar lugar de destaque no ranking internacional de academias, cujo mercado posiciona-se em segundo lugar mundial, com mais de 23.400 unidades, ainda em 2011 (IHRSA, 2011; Valor Econômico, Agosto de 2013).

Onde entra a Geografia nisso?

A ciência geográfica está intimamente associada neste tema e é central para este tipo de análise (inclusive análises mercadológicas). Ou seja, entendemos que o nosso objeto de estudo é o espaço geográfico e, portanto, a análise do espaço pode ser entendida levando-se em consideração sua dinâmica sempre constante, sempre em movimento, pois é a relação da sociedade e do seu território.

Segundo Milton Santos (2006), a compreensão do espaço é atribuída a dois campos: a psicosfera e a tecnosfera. Basicamente, a psicosfera é o reinos das ideias, das crenças, dos valores e necessidades e a tecnosfera é o campo formado pelos elementos materiais que compões a configuração geográfica, ou seja, o mundo material que vivemos. Nesta teoria, Santos indica que a tecnosfera sempre será o resultado de ideias fomentadas no campo da psicosfera, em outras palavras, o sistema de ações resulta no sistema de objetos. Esta ação, contudo, não é sempre linear, mas sim dialética, pois uma vez que as ações fomentam mudanças no campo material, ele, por si, gera novas experiências e vivências que retroalimentam o campo das ideias, característica que torna o território também uma instância social, sendo objeto e sujeito das ações humanas.

Dessa forma, é possível fazermos as seguintes relações: no contexto atual vivemos uma série de aspectos que caracterizam valores e crenças de nossas sociedades, tais como os ideais de padrão de beleza estética, corpos sem gordura e musculosos. O atual aparato tecnológico-informacional nos bombardeia diariamente com imagens, propagandas e mensagens que reforçam estes ideais como sendo o que todos precisam para ter aceitação social. Além disso, o nosso estilo de vida tem se tornado cada vez mais sedentário e também nossos hábitos alimentares estão gradualmente mais incrementados por produtos industrializados, com pouca qualidade nutritiva e alta quantidade calórica. Isso tudo resulta, portanto, em um grande paradoxo, um descompasso com o ritmo do corpo humano, conforme comenta o filósofo francês Gilles Lipovetsky (2007):

[…] Chegamos a este ponto: propagando valores de conforto e os desejos imediatos, a sociedade de hiperconsumo ocasionou uma inatividade física de massa, bem como um imenso processo de desestruturação ou de relaxamento das disciplinas corporais. Se o indivíduo hipermoderno sonha com um corpo perfeito, no cotidiano ele come demais, alimenta-se mal, é cada vez mais sedentário.

[…] A sociedade de hiperconsumo não é apenas a dos excessos do desempenho, é mais ainda a dos excessos da inatividade física e do lazer espetacular, da junk food e outras desordens alimentares. (LIPOVETSKY, 2007, pp.278-279).

O que Lipovetsky chama a atenção sobre o que ele classifica como “sociedade hipermoderna”, trata-se de nossa sociedade envolvida no cotidiano contemporâneo voltado para as práticas individualistas, [hiper] consumistas, tecnológicas e sedentárias. Essa sociedade normalmente está associada ao meio urbano pós-industrial.

O cenário, portanto, feito até agora, é o lugar propício para o nascimento e crescimento do fenômeno de academias de ginástica e musculação. Abordamos os aspectos e valores fomentados na sociedade atualmente e, abordamos também, como tais valores são constantemente reproduzidos e incentivados. A partir do momento em que a psicosfera do bem estar e boa forma está formada, a tecnosfera materializa esses desejos e ideais no espaço urbano e isso explica o porquê desse ramo mercadológico ter dado tão certo em cidades grandes.

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Equipamentos adequados para cada grupo muscular; música alta; iluminação e decoração voltadas para o despertar da motivação estética dos ideais de beleza. Imagem: “www.iha.sg”.

O hiper consumismo, apontado por Lipovetsky, não está somente associado às comidas ou às marcas, mas também abarca o consumo de serviços especializados na busca da construção desses ideais estéticos. Os segmentos de mercado, por sua vez, entenderam esta dinâmica e passaram ao público diferentes “produtos”, desde academias de alta renda com mensalidades beirando R$ 900 e oferecendo serviços específicos e acompanhamento personalizado a outras redes que resolveram investir em públicos da Classe C, cuja mensalidade é acessível na faixa de R$ 80 para este perfil de público, oferecendo equipamentos bons e a oportunidade de se conseguir “um corpo ideal”, sem gastar tanto.

Entretanto, os valores de boa forma e bem estar estão permeados por toda a sociedade e, atualmente, mesmo os mais pobres acabam tendo acesso a imagens de ideais de estética e boa forma. Assim sendo, as academias não estão presentes somente em lugares frequentados por ricos ou classe média, mas também há muitas academias em bairros pobres, algumas improvisadas, inclusive, mas todas com objetivos similares: a busca pelos ideais de bem estar e boa forma.

Ao se mapear o fenômeno de academias, podemos verificar que existem equipamentos voltados para a prática de exercícios físicos em todo o território, sendo, portanto, um elemento bastante presente na paisagem urbana. Curiosamente, recordamos o fato de que este fenômeno é recente, não tendo 20 anos sequer, contudo já é algo bastante recorrente no espaço urbano de grandes cidades e adentra na rotina de milhões de pessoas em todo o mundo. Os números de 2012 mostram 21,7 mil estabelecimentos no Brasil, segundo levantamento do SEBRAE (UOL, 2014), mas somente o município de São Paulo conta com aproximadamente 10% desse total. Mesmo em regiões mais pobres do município, como as periferias, há uma concentração significativa de pontos, conforme se verifica no mapa.

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Mapa de localização dos equipamentos de musculação e ginástica no município de São Paulo. Cada ponto na cidade representa uma academia. Verifica-se maior concentração de pontos no quadrante sudoeste, porém, há pontos em todo o território, mesmo em regiões mais pobres. Fonte: Multispectral, 2012. Elaboração: ROCHA, 2013. 

Fatores que motivam o crescimento e a incorporação da categoria de academias no cotidiano das pessoas estão relacionados, também, aos hábitos urbanos, tais como o trabalho intenso e deslocamentos demorados entre casa/trabalho. As academias se vendem também como espaços voltados para aliviar o stress através dos exercícios, oferecendo em contra-partida um ambiente motivador, com música alta, iluminação apropriada, flexibilidade de horários, além de um ótimo ambiente de interação social.

 

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Construção dos ideais de beleza, culto ao corpo e bem estar.                                                                                      Fonte da Imagem: 060429-N-9174G-002 Atlantic Ocean (April 29, 2006) – Airman John Lujan of Marfa, Texas, takes time out of his day for fitness to ensure he is ready for the upcoming semi-annual physical fitness assessment (PFA) aboard the Nimitz-class aircraft carrier USS Dwight D. Eisenhower (CVN 69). Eisenhower and embarked Carrier Air Wing Seven (CVW-7) are participating in their Composite Training Unit Exercise (COMPTUEX). U.S. Navy photo by Photographer’s Mate 3rd Class Andrew Geraci (RELEASED)

De fato, este tema está bastante presente na paisagem urbana, assim como faz parte do cotidiano de muitas pessoas. Embora se venda uma ideia da busca por uma vida mais saudável e menos sedentária, o que se promove, no final das contas, é o reforço pelos padrões estéticos tão divulgados pelas propagandas e tão desejado no senso comum. O importante, creio eu, é ter um senso crítico desse processo. O conhecimento sobre a constituição material deste fenômeno e o entendimento de que tais padrões são reforçados não por geração espontânea, mas sim para instigar o consumo de ideais de beleza.

Evidentemente que é importante ter o controle sobre nossa saúde, alimentação e práticas físicas, assim como também é importante entendermos que o cotidiano mais sedentário para a maioria da população é algo inédito na história humana e que, sim, apresenta riscos à saúde. Incentivo sempre a incorporação de hábitos saudáveis e a prática de exercícios e entendo também que a academia seja um lugar interessante para tais objetivos, assim como outros espaços também. Porém, nossa crítica se volta aos hábitos de [hiper] consumo: será que preciso mesmo ir com tanta frequência para a academia? Por que será que sempre acho que não estou com um corpo bom, mesmo estando nos “padrões”? Preciso mesmo pagar uma mensalidade de R$ 700? Será que não estou sendo levado demais pela busca de um padrão perfeito, do que somente ter uma boa saúde? 

Pense nisso.

Referências: 

ANTUNES, Alfreto. Academias de ginástica e musculação. WebArtigos, 2009. Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/academias-de-ginastica-e-musculacao/29648/. Acesso em Dezembro/2013.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Volume I. São Paulo, Editora Paz e Terra: 1999.

CASTRO, Ana Lúcia de. Culto ao corpo e sociedade: mídia, estilos de vida e cultura do consumo. 2ª Edição. São Paulo, Annablume: Fapesp: 2007.

GARCIA, Rosa Wanda Diez. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Revista de Nutrição da Faculdade de Nutrição PUC – Campinas. Outubro/Dezembro de 2003.

International Health, Racquet & Sportsclub Association (IHRSA). The 2012 IHRSA Global Report analyzes industry performance and outlook. Disponível em: http://www.ihrsa.org/media-center/2015/5/23/the-2012-ihrsa-global-report-analyzes-industry-performance-a.html. Acesso em Dezembro/2013.

LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo, Editora Barcarolla: 2004

____________. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo, Companhia das Letras: 2007.

Multispectral Sistemas e Serviços. Academias de musculação e ginástica em São Paulo. 2012.

Portal Valor Econômico. Mercado fitness brasileiro ganha musculatura. Disponível em: http://www.valor.com.br/video/2737468168001/mercado-fitness-brasileiro-ganha-musculatura. Acesso em Outubro/2013.

QUELHAS, Álvaro Azevedo. Profissional de educação física no segmento fitness: reflexões a partir da categoria trabalho. Periódicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ano XXIII, nº36. Florianópolis, Revista Motrivivência: 2011.

ROCHA, Lucas Miranda da. Análise geográfica das academias de ginástica e musculação no município de São Paulo. São Paulo, Universidade Cruzeiro do Sul: 2013.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo, Edusp: 2006.

__________. Por uma Economia Política da cidade: o caso de São Paulo. São Paulo, Edusp: 2009.

TRINCA, Tatiane Pacanaro. Pesos e medidas: padrões impostos comandam a tirania do corpo perfeito. Revista Sociologia, Ciência e Vida. São Paulo, Editora Escala: 2006.

UOL Economia. Número de academias aumenta 133% em 5 anos; veja dicas para montar negócio. Disponível em: http://www.economia.uol.com.br/empreendedorismo/noticias/redacao/2014/01/14/numero-de-academias-aumenta-133-em-5-anos.htm. Acesso em Fevereiro/2015.