Geocrítica do conflito árabe-israelense: parte 1

Por Lucas Rocha

O conflito entre Israel e Palestina desponta no século XX como um dos mais duradouros e complexos da humanidade. Neste caso, como poderíamos utilizar a Geografia como base de análise para melhor compreender esta situação? Por que, mesmo após décadas, noticiamos levantes sangrentos e grandes rebeliões neste pedaço tão pequeno de terra? Quais são os elementos e os agentes que estão envolvidos no passado e no presente para resultar neste cenário? As respostas para estas questões exigem um esforço de entendimento geográfico e uma profunda contextualização histórica.

The GeoSphere Project - Middle East
Oriente Médio, região de passagem entre o nordeste da África, sudoeste da Ásia e sul/ sudeste da Europa. Imagem com destaque para a Península Arábica. Fonte: The GeoSphere Project – Middle East — Image by © Tom Van Sant/CORBIS

A princípio, não podemos analisar a situação de forma maniqueísta, ou seja, reduzir a complexidade das relações em termos simples como se houvesse só um lado bom e outro ruim, ou um lado certo e o outro errado, pois a História relata diferentes agentes que atuaram na região com diferentes interesses e poderes, portanto o que vemos hoje é resultado dessa gama de forças com necessidades distintas, agindo de forma desigual em cada porção do território.

Afim de manter uma proposta de abordagem do assunto que mantivesse o aprofundamento necessário desejado, mas, ao mesmo tempo, que não fosse cansativo e massante em um só texto, decidi dividi-lo em algumas etapas temáticas e deixá-lo mais leve e interessante. A sequência dos textos ficará exposta nos títulos para que o leitor ou a leitora siga a trajetória de conteúdos na ordem proposta.

Contextualização histórica da Palestina e as Diásporas Judaicas

A região conhecida como Palestina está localizada próximo ao entroncamento entre os três velhos continentes, ou seja, é uma região de passagem para quem transita entre o norte da África, sudoeste asiático e, de certa forma, o sul da Europa. Deste modo, esta região já fora ocupada e povoada desde o início das primeiras civilizações humanas e, por estar localizada em um cruzamento de rotas, sempre foi alvo de disputas de guerra em função de sua importância estratégica.

Segundo relatos bíblicos, Canaã era ocupada por povos fenícios, bastante conhecidos pela suas habilidades com a pesca e o comércio no Mediterrâneo. O sistema linguístico dos fenícios também era bastante desenvolvido e foi uma das maiores influências da escrita greco-romana, a qual, posteriormente, iria fundamentar as bases de nossas línguas atuais. Conta a bíblia que o povo hebreu conquistou o território por meio de guerras e lá estabeleceu seus reinados e sua cultura. Um dos principais reinados foi atribuído ao Rei Davi, responsável por uma expansão significativa do território em comparação com seu antecessor, o Rei Saul. Davi iniciou a construção do Templo de Jerusalém, o qual foi finalizada por seu filho Rei Salomão e, até hoje, há um resquício de uma das paredes do templo, considerado atualmente o local mais sagrado do judaísmo.

O domínio hebreu, porém, não foi duradouro. Ao longo da Antiguidade Clássica, a região foi ocupada por outros impérios tais como os babilônios, os persas, os gregos e, posteriormente, os romanos. A conquista dos Babilônios, durante o século VI a.C., foi conhecida como a Primeira Diáspora, pois levou o povo judeu em cativeiro para a Mesopotâmia, onde lá permaneceu por décadas e se estabeleceu. Somente durante após a conquista da região pelo Império Persa, o imperador Ciro permitiu o regresso, no qual somente uma parcela da população optou por fazê-lo, mantendo sua cultura e tradições, assim como tomando posse de suas cidades e monumentos.

O período de dominação do Império Romano, no século I d.C., representou um dos principais marcos da humanidade, pois é nesta época que surge o cristianismo. Esta religião foi perseguida nos seus primeiros momentos devido ao caráter libertário das ideias de Jesus Cristo em conflito com os dogmas judaicos e os paradigmas de poder dos romanos de então. Entretanto, o cristianismo, desde sua concepção, teve por característica o trabalho missionário de evangelização, o que lhe permitiu uma rápida expansão no decorrer das primeiras décadas ao longo de algumas localidades do Mar Mediterrâneo.

Um fator de grande importância, ainda ao longo do século I, foi a Segunda Diáspora Judaica, cujo o grande responsável foi próprio Império Romano ao destruir Jerusalém (e com ela o Templo de Salomão), em 70 d.C. Diante deste evento, houve uma dispersão em massa de judeus para diversas outras nações, alguns seguiram em direção a África, muitos dos quais se estabeleceram na região onde atualmente é a Etiópia (Beta Israel). Outros foram para o leste rumo à Península Arábica, outros para o meio-sul da Ásia (onde atualmente é Irã, Paquistão e Índia) e até a China. Muitos outros dispersaram-se em direção oposta, norte da África e Península Ibérica (chamados sefardim) e norte da Europa (ashkenazim).

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O mapa, elaborado por um usuário Wikipedia, esclarece um pouco melhor a dimensão da Segunda Diáspora Judaica, classificando por cores as diferentes “sub-etnias” de judeus estabelecidas nessas localidades por volta de 1490. Beta-Israel, classificado em amarelo, compreendia diversas localidades ao longo da Etiópia; Judeus Sefaradim, em vermelho, no norte da África, Portugal e Espanha; Judeus Ashkenazim, no norte da Europa; além de diversas outras comunidades nos três continentes.

De fato, é inestimável o terror de um povo que é motivado a sair de sua terra por questões de sobrevivência. A dispersão provocada pela segunda diáspora não dividiu igualmente os agrupamentos de judeus para cada direção. Alguns grupos se concentraram em maior número em alguns lugares do que em outros, mas de qualquer forma, comunidades judaicas foram estabelecidas em diferentes nações em todo o mundo. Um número muito pequeno de judeus permaneceu na Palestina e continuou lá sua vida e tradição.

Curiosamente, os judeus dificilmente deixaram suas tradições, religião e costumes. Mesmo estando em nações diferentes, muitos deles continuaram o legado de suas tradições e línguas, dado que lhes davam destaque nas sociedades onde se estabeleciam. Na Palestina, os judeus que lá permaneceram, continuaram a praticar seus hábitos culturais e religiosos, entretanto, tornaram-se minoria étnica. Do lugar sagrado do judaísmo só restara uma das paredes, a qual passou a ser o foco de maior valor simbólico desta religião, representando o que, um dia, já foi o principal ícone do poder hebreu.

O cristianismo, por sua vez, não deixou de crescer. De religião perseguida pelo império, o cristianismo chegou ao poder por meio da conversão de Constantino, no século IV, o qual estipulou a mesma como a religião oficial do Império Romano. Dali em diante, a história do ocidente mudaria para uma nova etapa com influências até hoje em dia. Com a expansão e a influência política do cristianismo ainda durante o Império Romano, os lugares de importância simbólica do judaísmo passaram a ser também significativos para os cristãos. Além disso, os lugares onde se deram as principais narrativas sobre Jesus Cristo tornaram-se sagrados para a religião oficial do império, fato que deu à Palestina um caráter especial para judeus e cristãos.

A influência cristã e romana na região manteve-se até, aproximadamente meados do século VII, momento em que o islamismo recém surgido expandia-se para a Palestina. É interessante notar que, tal como o cristianismo, o islamismo teve um rápido crescimento territorial. Ainda no início do século VII, o Império Bizantino (resultado da divisão do Império Romano do Oriente) apresentava sinais de enfraquecimento de seu controle e, definitivamente, perdeu a região para os árabes muçulmanos nessa época.

A conquista muçulmana de Jerusalém teve um sentido simbólico maior para os islâmicos, pois, segundo o islamismo, o profeta Mohamed (Maomé) teria feito uma viagem de Meca a Jerusalém e, na localização onde se encontra o Domo da Rocha, ele teria subido aos céus e se encontrado com os profetas Jesus e Moisés. O Domo da Rocha foi construído pelos árabes a partir do século VII, juntamente com a mesquita de Al Aqsa, um dos lugares mais sagrados do islamismo e, coincidentemente, no mesmo lugar sagrado do judaísmo onde era o Templo de Salomão, destruído aproximadamente 600 anos antes. Ainda neste mesmo local, segundo os judeus, Abraão quase teria sacrificado seu filho Isaque como um ato de fé em Deus. Logo, este representa o ponto de intersecção mais sagrado para as três maiores religiões monoteístas do mundo, atualmente, como se visualiza na imagem a seguir:

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A imagem atual mostra exatamente o ponto mais sensível de Jerusalém, simbolicamente falando. “Western of Wailing Wall” é o Muro das Lamentações, último resquício do antigo Templo de Salomão; o complexo que envolve a Mesquita de Al Aqsa e o Domo da Rocha “Dome of the Rock” fazem parte do Nobre Santuário, sagrado para os muçulmanos, ou para os judeus, o Monte do Templo. Fonte: BBC News, Junho/ 2015.

Jerusalém adquire, portanto, um sentido simbólico de extremo valor religioso, cultural e histórico para judeus, cristãos e muçulmanos. Na medida em que as influências político-militares, econômicas e religiosas se apropriaram do território ao longo da História, deixaram suas marcas, seus legados e símbolos. Imprimiram àquele território suas influências, objetos e formas, cuja disputa creio eu não existir similar em todo o mundo até hoje.

O domínio e influência árabe na região consolidou-se ao longo dos séculos posteriores. Mesmo após a tomada da região pelos turco-otomanos, no começo do século XVI, não significou muita diferença no modo de vida e nas práticas das tradições religiosas de árabes, cristãos e judeus na Palestina, pelo contrário, a religião oficial do Império Turco-Otomano era o islamismo e mesmo a linguagem usada era a árabe. Sob este domínio, a Palestina manteve-se por séculos adiante mergulhada em um modo de vida feudal, exceto por alguns grupos de nômades beduínos.

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No próximo texto, abordaremos os processos de dominação dos territórios do Oriente Médio pelas potências coloniais europeias e as alianças geoestratéticas ao longo do século XIX e início do século XX, que foram decisivas na I Guerra Mundial e fomentaram as bases de um dos conflitos mais complexos da História.

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